Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Unidade 1
Ética e política
Aula 1
Por que pensar sobre a ética?
Introdução da unidade
Objetivos da Unidade
Ao longo desta Unidade, você irá:
relatar a performance humana na sociedade contemporânea;
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expressar uma re�exão sobre as atividades essenciais da política;
debater os valores da liberdade e da responsabilidade individual.
Introdução da Unidade
Aqui iniciamos nossa jornada em direção à complexa rede de relações, valores e estruturas que
compõem a realidade brasileira. Em sua opinião, nossa sociedade tem como orientação principal
de seu funcionamento os princípios ou o poder? Agimos coletivamente em função de uma busca
para estabelecermos aquilo que consideramos correto ou nossa realidade pode ser melhor
compreendida a partir das relações de força que são estabelecidas em nosso país?
Repare que essa busca pela ação correta pode incluir processos amplos de nossa vida em
coletividade: há algum problema em empresas privadas �nanciarem campanhas políticas? Seria
correto manter benefícios para funcionários públicos que já recebem salários altíssimos?; mas
também envolve decisões de nossa vida privada: se uma regra nos parece injusta, devemos
obedecê-la? Considerar uma ação correta ou incorreta é algo que se faz sozinho ou deve-se levar
em conta aspectos sociais?
A mesma abrangência deve ser considerada na análise das relações de poder, já que elas se
manifestam em escalas elevadas: até onde deve ir a intervenção do Estado brasileiro em nossa
sociedade? A maioria deve sempre se impor?; e em nosso cotidiano individual: o serviço público
que utilizo é um favor que me foi oferecido ou é um direito que me é assegurado? Meu ato
individual pode ter impacto na sociedade?
Portanto, se pretendemos analisar toda uma diversidade de fatores da vida coletiva de nosso
país, é provável que essas duas orientações – princípios e poder – apareçam em nossa análise.
Por isso, é interessante recorrermos a dois domínios do conhecimento voltados a esses
assuntos: a ética e a política. Embora esses temas sejam tratados frequentemente em nosso dia
a dia, o estudo mais aprofundado desses campos do conhecimento, conforme faremos nesta
primeira unidade, será um importante suporte para compreendermos o ambiente que nos cerca e
até mesmo nosso próprio cotidiano.
Para tanto, utilizaremos algumas referências tradicionais do pensamento e da �loso�a política
ocidentais, que servirão de instrumento para que possamos re�etir sobre dilemas e impasses
éticos e políticos constatados no Brasil contemporâneo, nas mais diversas áreas, como meio
ambiente ou diversidade étnico-cultural da população brasileira. Assim, a partir de uma
compreensão humanista do que consiste a vida em sociedade, podemos, então, identi�car
alguns requisitos para uma participação cidadã na comunidade que nos abriga.
A análise desses dois temas clássicos das ciências humanas, ética e política, tem especial
importância na atualidade, já que os amplos campos de estudo dessas disciplinas podem
contrastar com a precisão e a especialização de novas áreas do conhecimento humano. Assim, a
ética ainda teria aplicação prática nos dias de hoje? A ciência pode substituir as re�exões éticas?
E as ponderações políticas seriam abstratas demais para afetar nosso cotidiano?
As respostas a essas indagações – e a outras que certamente surgirão – serão trabalhadas à
medida que analisarmos os fundamentos da �loso�a ética e suas relações com os dilemas que
despontam em nosso cotidiano, bem como os diferentes tipos de organização política e seus
vínculos com nosso desenvolvimento enquanto sociedade.
A unidade está dividida em três aulas:
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aula um: por que pensar sobre a ética?. Nesta aula, serão tratados o conceito de ética e a
sua importância. Veremos também como a política é importante em nossas vidas e os
aspectos do individualismo e das relações sociais contemporâneas.
aula dois: por que discutir política?. Nesta aula, serão desenvolvidas nossas próprias
percepções acerca do caráter abrangente e transformador da política em nossa realidade.
aula três: é possível ser ético no mundo contemporâneo?. Nesta aula, serão analisados
alguns elementos de nosso regime econômico, investigando preceitos do sistema
capitalista, bem como demandam re�exões sobre o que podemos entender por liberdade e
responsabilidade nos tempos atuais.
Introdução da aula
Qual é o foco da aula?
Nesta aula, veremos o conceito de ética e moral, bem como suas respectivas importância no
nosso dia-a-dia.
Objetivos gerais de aprendizagem
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Ao longo desta aula, você irá:
de�nir a visão da ética na sociedade;
esclarecer os comportamentos segundo a moral;
debater sobre a complexidade do exercício de nossas escolhas.
Situação-problema
Em pleno século XXI, você provavelmente já notou que o desenvolvimento tecnológico tem
criado novas ferramentas técnicas capazes de atribuir às máquinas funções antes exclusivas da
ação humana. Se é verdade que o processo de substituição da atividade de homens e mulheres
pela operação de equipamentos arti�ciais pode ser percebido ao longo de toda a história, não
seria um exagero considerar que, atualmente, esse processo se vê intensi�cado e atinge
patamares antes inimagináveis; avanços nas áreas de robótica, automação e conectividade, por
exemplo, ampliam a possibilidade de utilização da tecnologia para a realização das mais
diversas tarefas exigidas nas sociedades contemporâneas. Assim, a tecnologia poderia resolver
todos os problemas do convívio em sociedade, de�nindo quais seriam as condutas e os
procedimentos corretos a serem tomados diante de uma situação concreta?
As máquinas realizam as tarefas com maior precisão, maior velocidade e menor margem de erro
do que os homens. Desse modo, a maior produtividade e e�ciência decorrentes do uso da
tecnologia constitui motivo su�ciente para defender o uso de máquinas indiscriminadamente em
todos os setores da atividade humana? A performance elevada é critério su�ciente para
solucionar problemas de nossa realidade cotidiana? Ou existem outros princípios da ação
humana que diferenciam nosso funcionamento da programação típica da tecnologia?
Pense, por exemplo, nos veículos com piloto automático: essas máquinas saberiam escolher a
reação adequada diante de uma provável batida, fazendo um julgamento se o menor prejuízo
seria dani�car o veículo ou arriscar a vida de passageiros e pedestres? Ou essa ponderação é
essencialmente humana?
Aplicativos de agendamento de consultas médicas consideram a gravidade da doença para
marcar os atendimentos? Ou o critério é apenas a ordem de marcação? Seria possível programar
um aplicativo com todas as possibilidades de doenças para a de�nição da ordem de consulta?
A vigilância tecnológica exercida nas ruas, em nome da segurança pública, saberia diferenciar o
excesso de velocidade irresponsável daquele necessário a uma prestação de socorro
emergencial? Ou o que justi�ca a primeira conduta estar errada e a segunda estar certa é a
compreensão humana dos fatos?
Nota-se, que a vida em coletividade exige certas de�nições do que devemos ou não devemos
fazer, solicitando de nossa racionalidade um esforço para identi�car em que consiste agir
corretamente. Bem-vindo ao estudo da ética, campo fundamental para de�nirmos qual a
essência da humanidade que queremos compor.
Ética
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Sabemos que no Brasil o direito à moradia constitui uma das prerrogativas que o Estado e a
sociedade devem defender, existindo, inclusive, norma constitucional que a�rma que “São
direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte [...]”
(BRASIL, 1988, grifo nosso).
Sabemos, também, que a propriedade privada recebe semelhante proteção constitucional,
conforme se observa no trecho “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros
,um processo legítimo e compreensível de
a�rmação das potencialidades pessoais.
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O aspecto individualista do capitalismo foi ressaltado em suas origens por Adam Smith (1723-
1790), um dos autores clássicos do pensamento econômico. Smith argumentou que a
prosperidade econômica é fundamental para a busca da felicidade humana e deve, portanto,
constituir o objetivo principal das sociedades e dos homens que as governam. Esse nível de
produção mais elevado a que se refere o autor não seria resultante da benevolência ou
solidariedade dos indivíduos, mas, ao contrário, da busca de cada um por sua própria felicidade.
Existindo diferentes tarefas necessárias à vida coletiva, Smith defende que cada indivíduo se
especialize naquilo que lhe seja mais vantajoso, que lhe traga mais resultados individuais, já que
esse comportamento egoísta de cada pessoa faz com que os indivíduos troquem entre si o que
produzem e não consomem, levando à maior prosperidade econômica e à maior satisfação da
sociedade inteira. Esse equilíbrio de egoísmos de Adam Smith pode ser ilustrado por sua famosa
a�rmação de que:
[...] “não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos
obter o nosso jantar, mas da atenção que eles dispensam ao seu próprio interesse.
Nós apelamos não ao seu sentimento humanitário, mas ao seu egoísmo, e nunca lhes
falamos de nossas necessidades, mas dos seus próprios proveitos.” (SMITH, 1996, p.
74 apud COMPARATO, 2016, p. 289)
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Re�ita
Competição versus coordenação
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A competição entre os agentes garante ao vencedor sempre o melhor resultado possível? Ou a
coordenação entre os indivíduos pode levar a soluções mais proveitosas a todos eles?
O matemático norte-americano John Nash (1928-2015) investigou essas questões para
aprofundar o conhecimento sobre a Teoria dos Jogos, ramo da matemática que analisa escolhas
e resultados estratégicos na interação entre agentes distintos.
Pós revolução industrial
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Já no século XX, consolidada a Revolução Industrial e fortalecido o modo de produção baseado
na divisão do trabalho, esse vínculo entre o sistema capitalista e o comportamento individualista
recebe grande ênfase também no pensamento do economista e �lósofo britânico Friedrich
August von Hayek (1899-1992). Segundo Hayek, a inexistência de barreiras aos
empreendimentos individuais torna-se condição fundamental para a satisfação dos gostos,
inclinações e desejos dos homens, algo que só pode ser obtido por meio da competição.
O ambiente social teria a função, em linhas gerais, de apenas estabelecer alguns limites para que
os indivíduos pudessem buscar seus próprios valores e preferências, sem que existisse, segundo
o autor, princípios amplos compartilhados pela coletividade. Assim, defende Hayek,
“São esses reconhecimentos do indivíduo como juiz supremo dos seus próprios
objetivos, e a crença de que suas ideias deveriam governar-lhe tanto quanto possível
a conduta, que formam a essência da atitude individualista” (HAYEK, 1977, p. 56),
fazendo com que a consciência individual seja a única orientação da atividade humana.
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A ética e o “espírito”
Uma das referências clássicas sobre a relação entre o sistema capitalista e o comportamento
individualista se encontra na obra: A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, de Max
Weber (1864-1920). Nesse livro, o intelectual alemão identi�ca na religião protestante estímulos
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à doutrinação e à salvação individuais que seriam importantes para que os preceitos do
capitalismo se desenvolvessem.
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Em termos práticos, portanto, o individualismo sintetizado por esses dois autores
representativos da economia capitalista nos sugere que devemos nos preocupar apenas com
nossos próprios interesses pessoais, uma vez que não existiriam referências externas para guiar
nosso comportamento cotidiano e que os arranjos sociais mais satisfatórios nada mais seriam
do que a soma dessas buscas pessoais.
Essa perspectiva, popularmente resumida na frase “cada um cuida da sua vida”, reduziria a
importância e a aplicabilidade de orientações coletivas para a compreensão e a melhoria de
nossa sociedade, a exemplo da ética e da política. Entretanto, a análise mais aprofundada
desses argumentos e da própria realidade em que vivemos levanta limites para a classi�cação
do individualismo como fator exclusivo da ação e da organização humanas, conforme veremos a
seguir.
De imediato, podemos perceber que a competição individualista tende a apresentar profundos
efeitos sociais negativos. Se é verdade que a disputa entre pessoas ou companhias pode levar à
constante inovação e à consolidação de métodos e práticas mais e�cientes, não podemos deixar
de focar também naqueles que não obtêm êxito no processo de competição. Nesse contexto,
torna-se pertinente a ponderação feita pelo economista Paul Singer (1932-2018):
“A apologia da competição chama a atenção apenas para os vencedores, a sina dos
perdedores �ca na penumbra. O que acontece com os empresários e empregados
das empresas que quebram? E com os pretendentes que não conseguem emprego?
Ou com os vestibulandos que não entram na universidade? Em tese, devem continuar
tentando competir, para ver se saem melhor da próxima vez. Mas, na economia
capitalista, os ganhadores acumulam vantagens e os perdedores acumulam
desvantagens nas competições futuras.Empresários falidos não têm mais capital
próprio, e os bancos lhes negam crédito exatamente porque já fracassaram uma vez.
Pretendentes a emprego que �caram muito tempo desempregados têm menos
chance de serem aceitos, assim como os que são mais idosos. Os reprovados em
vestibular precisariam se preparar melhor, mas como já gastaram seu dinheiro
fazendo cursinho a probabilidade de que o consigam é cada vez menor. Tudo isso
explica por que o capitalismo produz desigualdade crescente, verdadeira polarização
entre ganhadores e perdedores [...]. Vantagens e desvantagens são legadas de pais
para �lhos e para netos. Os descendentes dos que acumularam capital ou prestígio
pro�ssional, artístico etc., entram na competição econômica com nítida vantagem em
relação aos descendentes dos que se arruinaram, empobreceram e foram
socialmente excluídos. O que acaba produzindo sociedades profundamente
desiguais.” (SINGER, 2002, p. 8-9)
Individualismo
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A valorização exagerada do individualismo, e a consequente negação dos vínculos coletivos do
ser humano, despreza o surgimento de problemas generalizados que di�cultam o funcionamento
da sociedade e, assim, afetam todos os indivíduos, ainda que em diferentes graus. O
desemprego, a desigualdade social e a violência, por exemplo, são problemas sociais que podem
estar vinculados aos efeitos nocivos de uma competição individualista extrema, exigindo novas
formas de se pensar nossa realidade que incluam considerações de cunho coletivo.
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Estagnamos?
Depois de 15 anos de contínua redução, a desigualdade de renda no Brasil, medida em 2017,
parou de cair. Se a população brasileira fosse de 100 habitantes, o cidadão mais rico teria uma
renda 36,3 vezes maior do que os 50 mais pobres. A diferença entre a renda de negros e brancos
foi ainda mais acentuada.
Explore o relatório País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras, produzido pela
Oxfam Brasil, e repare na gravidade de alguns dos problemas sociais existentes em nossa
realidade contemporânea.
https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pais-estagnado/
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Desigualdade de renda. Fonte: Oxfam Brasil.
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Adicionalmente, passando agora o enfoque para a conduta humana, é necessário reconhecer
que existem fatores que condicionam o comportamento individual que não são propriamente
vinculados ao individualismo, ao autointeresse. Primeiramente, podemos constatar que, por
vezes, a conduta
,que praticamos não visa a obter ganhos pessoais, mas somos conduzidos por
sentimento de solidariedade ou simpatia, que justi�cam, por exemplo, doações e trabalhos
voluntários.
Semelhantemente, podemos condicionar nossa conduta por comprometimento a causas
maiores, sejam elas abstratas – o que é considerado justo, por exemplo – ou concretas – como
a preservação de um rio especí�co -, cuja observância pode eventualmente limitar nossos
benefícios pessoais. Também, o estabelecimento de padrões de comportamentos sociais
especí�cos pode incluir variáveis distintas do auto interesse na ação humana; assim, fazemos ou
deixamos de fazer algo não pelos resultados materiais que essa atividade produzirá, mas pelos
efeitos de inclusão ou pertencimento sociais que a conduta origina.
Ainda que se possa argumentar que todas as motivações mencionadas teriam o autointeresse
como resultado �nal do processo, mediante a satisfação individual pela conduta solidária,
comprometida ou inclusiva, temos que reconhecer que as motivações diferem em sua essência
dos ganhos econômicos e do egoísmo anteriormente mencionados. Essa é a percepção do
economista indiano Amartya Sen (1933 - ), autor de importante crítica ao individualismo
enquanto característica incontornável de nosso sistema econômico.
De acordo com Sen, a valorização daquilo que é útil, racional, produtivo ou e�ciente, critérios
importantes do regime econômico que vigora no Brasil e em grande parte do mundo, não deve se
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desconectar daquilo que é ético. Tratar a produção e a distribuição da riqueza apenas por
ponderações matemáticas do que seria mais e�ciente ou lucrativo, ou limitar o comportamento
humano ao egoísmo individualista – cada um cuidando da sua vida -, seria um grave, mas
frequente, erro na compreensão do funcionamento da economia, uma vez que a ética constitui
qualidade fundamental para o sistema econômico, reconhecida até mesmo pelos clássicos da
teoria de livre mercado, a exemplo do próprio Adam Smith. Nesse sentido, Sen identi�ca o estudo
da ética já nos primórdios da elaboração teórica do capitalismo, ao a�rmar que:
“A interpretação errônea da postura complexa de Smith com respeito à motivação e
aos mercados e o descaso por sua análise ética dos sentimentos e do
comportamento re�etem bem quanto a economia se distanciou da ética com o
desenvolvimento da economia moderna. Smith de fato deixou contribuições pioneiras
ao analisar a natureza das trocas mutuamente vantajosas e o valor da divisão do
trabalho e, como essas contribuições são perfeitamente condizentes com o
comportamento humano sem bonomia e sem ética, as referências a essas partes da
obra de Smith têm sido profusas e exuberantes.Outras partes dos escritos de Smith
sobre economia e sociedade, que contêm observações sobre a miséria, a
necessidade de simpatia e o papel das considerações éticas no comportamento
humano, particularmente o uso de normas de conduta, foram relegadas a um relativo
esquecimento à medida que essas próprias considerações caíram em desuso na
economia.” (SEN, 1999, p. 43-44)
Ética como valor indispensável
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Assim, percebemos que o estudo da ética não só é plenamente compatível com os padrões
contemporâneos de organização política, econômica e social características do regime
capitalista, mas também nos fornece um importante instrumento para aprimorar problemas
sociais decorrentes desse sistema e para compreender as motivações do comportamento
humano nessa realidade.
Uma das consequências imediatas da a�rmação da ética como valor indispensável no mundo
contemporâneo é a necessidade de, então, pensarmos como o indivíduo se insere nessa rede de
relações sociais que forma nossa coletividade. Em outras palavras, já que o ditado popular “cada
um cuida da sua vida”, como vimos, não se aplica de modo absoluto em nossa realidade
contemporânea, como devemos cuidar dessa relação entre o indivíduo e a sociedade?
Nesse estudo, os ensinamentos da �lósofa Hannah Arendt (1906-1975) mostram-se
extremamente enriquecedores, na medida em que esse vínculo entre o ser humano e a
coletividade que a cerca impõe características especí�cas ao desfrute de sua liberdade e ao
exercício de sua responsabilidade.
Segundo Arendt, em meio a esse contexto de a�rmação do sistema capitalista, que se prolonga
dos séculos XVIII ao XX, o conceito de liberdade passa a re�etir valores e perspectivas liberais,
concentrando-se em aspectos da vida privada dos seres humanos. Tais objetivos privados
podem ser compreendidos, nas discussões do presente estudo, como aquelas atividades
voltadas à satisfação de objetivos e necessidades estritamente pessoais, diferentes, portanto, de
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outras práticas focadas na atuação da vida pública, a qual leva em conta, por de�nição,
considerações que vão além dos interesses de um único indivíduo.
Desse modo, o exercício da liberdade, sob a perspectiva privada, estaria vinculado à busca
constante pelo acúmulo de riquezas ou ao consumo desenfreado, bem como no usufruto do livre
arbítrio e de direitos civis especí�cos da esfera particular, em linha com o individualismo já
mencionado. O homem passaria a reduzir sua vida a um ciclo de trabalho árduo que o permita
exercer essas práticas individualistas, apresentando um comportamento automatizado e
super�cial, no qual a exploração e a insatisfação pessoal se tornariam constantes.
Crítica a essa perspectiva, Arendt apresenta uma compreensão da liberdade inteiramente oposta
a esse modelo, vinculando o conceito ao pleno exercício de práticas públicas. Como os homens
nascem livres para estabelecer diversas relações entre si, organizando sua vida coletiva, existe
uma ligação inseparável entre a liberdade e a política, e o campo onde a liberdade passa a ser
desenvolvida deixa de ser a esfera particular, tornando-se o espaço público.
Nas palavras da autora,
“ação e política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são
as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a
existência da liberdade” (ARENDT, 2005, p. 191).
A classi�cação da liberdade enquanto ação política ressalta a potência que existe nesse valor,
uma vez que estimula a ação conjunta que decidirá sobre coisas de interesse comum,
estabelecendo constantemente novas formas de construir a realidade.
Esses fortes vínculos estabelecidos por Hannah Arendt entre o indivíduo e a sociedade em sua
compreensão da liberdade também são percebidos quando focamos em outra aptidão humana,
a responsabilidade. Assim como rejeita o isolamento individual de "cada um cuida da sua vida”, a
percepção arendtiana sobre a responsabilidade nega também a ideia frequente em nossa
sociedade de que não dispomos de condições para avaliar a justiça ou injustiça da conduta
alheia, ou, em termos rotineiros, o “quem sou eu para julgar o que ele fez?”.
Se os seres humanos nascem com a capacidade de fazer re�exões, existiria um
comprometimento de cada indivíduo, ainda que ele não seja voluntariamente assumido, de
estabelecer juízos e pensar a respeito dos acontecimentos. A capacidade racional – e, portanto,
a responsabilidade – não seria exclusividade de �lósofos e governantes, já que todos temos o
potencial para pensar, estabelecer juízos e lembrar dos acontecimentos passados, criando uma
espécie de padrão comum daquilo que aceitamos enquanto sociedade, percebido por todos os
indivíduos.
Esse processo é particularmente importante na medida em que os hábitos, costumes e tradições
sociais se alteram com o passar do tempo, exigindo justamente de nosso juízo e de nosso
pensamento a responsabilidade de evitar que essas mudanças caminhem em direção à prática
do mal.
Desse modo, a realização do mal não exige necessariamente uma intenção cruel ou o objetivo
proposital de praticar injustiças, mas a simples negação individual de utilizar seu senso de
responsabilidade pessoal, de negar esse exercício de pensar sobre a correção dos
acontecimentos,
,é capaz de permitir que barbaridades aconteçam, em um processo que Arendt
chamou de banalidade do mal.
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Re�ita
Não me importo
Leia o poema Intertexto, de Bertold Brecht (1898-1956), e re�ita de que forma esse conteúdo se
relaciona com as ideias de responsabilidade e banalidade do mal formuladas por Hannah Arendt.
“INTERTEXTO
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.” (BRECHT, [s.d., s.p.])
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A renúncia ao processo individual de pensar ou a tentativa de se tornar irresponsável por um
juízo crítico – “Quem sou eu para julgar?”, “Se fazem assim é porque deve estar certo...” – acaba
por negar a própria condição de pessoa dos seres humanos. Arendt, em linha com essa
a�rmação da autonomia no exercício do pensar, critica a ideia de responsabilidade coletiva – “É
porque todo mundo faz desse jeito” –, já que a responsabilização coletiva impede que cada um
assuma sua responsabilidade individual.
Os efeitos práticos do conceito de responsabilidade de Hannah Arendt são importantíssimos
para reforçar a importância do estudo da ética no mundo contemporâneo, visto que – uma vez
mais nesta aula – negam o isolamento do indivíduo em relação ao grupo social do qual ele faz
parte, reforçando a necessidade de analisarmos as maneiras pelas quais nos inserimos na
realidade brasileira e de reconhecermos o compromisso de cada um dos indivíduos perante
problemas atuais de nosso país.
Nesse cenário, um dos desa�os mais signi�cativos e atuais percebidos pelo Brasil – e
profundamente relacionado ao sistema econômico vigente e às ideias de individualismo e
responsabilidade trabalhadas nesta aula – consiste na manutenção de uma ordem ambiental
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equilibrada em nosso território, sobretudo em função dos padrões de consumo vigentes na
sociedade contemporânea.
Consumismo
Avanços técnicos nos processos produtivos, bem como inovações na organização e
funcionamento de empresas, podem ser identi�cados como fatores de ampliação da capacidade
produtiva das companhias contemporâneas, ampliando a oferta de bens e serviços em nossa
sociedade.
Do lado dos consumidores, a multiplicação de necessidades materiais – sejam elas reais ou
imaginadas – para a satisfação de uma in�nidade de tarefas rotineiras bem como o signi�cado
que coletiva e individualmente damos para a aquisição de novos produtos tendem a estimular a
demanda por bens e serviços em uma economia. O resultado do encontro dessas duas
tendências pode ser de�nido como o fortalecimento do consumismo.
Enquanto o conceito de consumo expressa majoritariamente a aquisição de um bem ou de um
serviço para satisfazer uma necessidade, a ideia de consumismo, por sua vez, revela a
intensi�cação desse processo, atingindo níveis elevados de compra que nem sempre
apresentam uma utilidade real ou relevante. Assim, o consumismo pode ser ilustrado pela
aquisição frequente de produtos desnecessários, pela obtenção de bens ou serviços que
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simbolizam um status elevado na sociedade em que vivemos – artigos de luxo, por exemplo – ou
pela compulsão a comprar, como forma de compensar algum sentimento desagradável.
Do lado da oferta, o consumismo pode ser estimulado pelo reforço que a publicidade fornece ao
prazer ou prestígio de uma compra, pela criação constante de novas necessidades materiais –
ou mesmo do sentimento de necessidade – e pela produção proposital de bens com prazo
reduzido de utilização, que quebrarão ou se tornarão ultrapassados brevemente, exigindo novas
compras – a chamada obsolescência programada.
Seja como for, o comportamento consumista apresenta profundos impactos no meio ambiente
em que vivemos, seja porque os recursos naturais são utilizados na produção desses bens e
serviços, seja na condição de insumos do processo produtivo, seja porque seu consumo
produzirá resíduos ou descartes prejudiciais ao ambiente. Os impactos ambientais podem ser
considerados externalidades negativas da dinâmica econômica, isto é, efeitos não propositais de
uma atividade econômica que acabam afetando, nesse caso negativamente, pessoas que sequer
participaram dessa atividade.
Assim, quando uma fábrica polui o ar de uma cidade inteira, ou quando nossos carros produzem
fumaça que contribuem para essa poluição, percebemos, uma vez mais, que nosso
comportamento individual não se desenvolve de modo separado da vida coletiva, reforçando a
necessidade de mantermos padrões éticos também no que se refere aos níveis de consumo que
desejamos enquanto indivíduos e sociedade.
A aplicação dessa ética no campo ambiental pode sugerir, por exemplo, a consolidação da
reciclagem enquanto prática habitual no Brasil, o compartilhamento de bens e serviços que reduz
os custos ambientais – dar carona, dividir eletrodomésticos de uso esporádico entre vizinho ou
familiares –, o estabelecimento de clubes de trocas de produtos usados ou mesmo a simples
manutenção ou conserto de bens, evitando novas compras.
Nesse mesmo sentido, ética e meio ambiente apresentam importante ponto de convergência em
um dos campos mais representativos da evolução tecnológica da contemporaneidade: a
bioética. O avanço nas pesquisas cientí�cas envolvendo campos da biologia e da medicina
apresenta inegáveis benefícios para a humanidade, na medida em que nos permite solucionar
questões que há tempos impunham obstáculos ao desenvolvimento humano – por exemplo: a
criação de vacinas e novos tratamentos auxilia o combate a doenças graves; a melhoria no
cultivo de vegetais ou na duração dos alimentos constitui um aliado no combate à fome; e a
compreensão da genética humana pode ajudar a prevenir frequentes problemas de saúde.
Entretanto, o domínio de tecnologias antes inéditas amplia o potencial de intervenção do homem
sobre a natureza, possibilitando a realização de novas atividades cujos resultados ainda são
incertos, tanto do ponto de vista biológico quanto em uma perspectiva dos efeitos sobre a
convivência e organização de nossas sociedades.
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Exempli�cando
Fábrica de humanos?
Em 2018, veio à tona a notícia de que um cientista chinês teria alterado o DNA de alguns bebês,
em um processo sem precedentes na história médica de nosso planeta. As polêmicas que
surgiram na comunidade cientí�ca, e em diversos setores de nossa sociedade, evidenciam a
sensibilidade do tema, provocando importantes ponderações de ordem ética, conforme se
constata na reportagem a seguir:
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Leia a reportagem: Opinião: não à edição genética de humanos, escrita por Fabian Schmidt.
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Nesse sentido, é fundamental questionarmos se a modi�cação genética de plantas utilizadas em
nossa alimentação terá impactos sobre o ecossistema e sobre nossa saúde; inexistindo, até o
momento, uma resposta de�nitiva para essa pergunta, seria correto continuarmos utilizando tais
técnicas? Até que ponto devemos manter arti�cialmente a vida de um ser humano, adiando a
morte que certamente já teria ocorrido em condições naturais?
Se o aumento da expectativa de vida do homem causar pressões sobre o meio ambiente, seria
justo continuarmos desenvolvendo tecnologias para retardar a morte humana? Seria correto
clonarmos seres humanos? A alteração genética de embriões, determinando características
físicas do bebê que vai nascer, poderia aumentar o racismo em nossa sociedade? Se sabemos
que uma doença é incurável, seria justo reduzir o sofrimento do paciente antecipando sua morte?
Desse modo, para além do que dispomos de tecnologia para fazer, devemos manter a discussão
sobre o que seria efetivamente correto
,fazer. Assim, a bioética pode ser compreendida como o
campo de estudos que se utiliza de conceitos da �loso�a, sociologia, psicologia, antropologia,
entre outros, para estabelecer juízos éticos a respeito da utilização de novas tecnologias nas
áreas das ciências da vida.
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Pesquise mais
Bioética – modo de usar
Não são poucas as atividades nas quais a atuação pro�ssional deve ser guiada por um código de
ética. Nesse contexto, o surgimento de temas especí�cos das ciências naturais, relacionados a
questões essenciais da existência humana, motivou a elaboração internacional de um
documento que associa a bioética às garantias fundamentais de nossas sociedades. Trata-se da
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
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É importante notar que essa evolução tecnológica contemporânea não torna obsoleto o estudo
da ética em nossas sociedades, mas, em sentido contrário, cria novos questionamentos –
resultantes de novas práticas cientí�cas – para os quais a avaliação ética se torna indispensável.
Assim, notamos que não apenas é possível manter um comportamento ético em tempos
contemporâneos, como essa conduta se torna extremamente necessária para ajustarmos
compreensões tradicionais de nossa sociedade – como o individualismo capitalista –,
assegurarmos a evolução harmônica de nossa espécie – respeitando nosso ambiente e nossas
perspectivas cientí�cas – e solidi�carmos uma inserção libertadora e responsável dos indivíduos
em nossa comunidade.
Conclusão
https://www.dw.com/pt-br/opini%C3%A3o-n%C3%A3o-%C3%A0-edi%C3%A7%C3%A3o-gen%C3%A9tica-de-humanos/a-46470138
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Se analisarmos com cuidado as perguntas que deram início ao estudo desta aula, constatamos
que os problemas observados têm em comum o estabelecimento de uma relação de oposição,
de contraste, entre a busca de ganhos individuais e as necessidades coletivas de uma
sociedade.
Nesse sentido, pareceria inviável que, no mundo contemporâneo, assumissemos individualmente
um comportamento baseado na valorização dos laços sociais e no aprimoramento da vida
coletiva – temas essenciais à conduta ética. A necessidade de progredirmos individualmente
que a realidade nos impõe deixaria em segundo plano, nessa situação de contraste entre a
pessoa e o grupo, os preceitos de uma vida ética.
Entretanto, como vimos, a a�rmação da esfera individual não exige necessariamente a negação
da vida coletiva, e vice-versa, mas existem vínculos de complementaridade que possibilitam que
esses dois campos se a�rmem mutuamente.
Sob a lógica econômica do capitalismo, percebemos que o individualismo não é fator único de
motivação individual; por vezes, é justamente a consideração de aspectos coletivos que orienta a
conduta individual. Ainda, identi�camos que o autointeresse não produz sempre o bem-estar
coletivo, sendo necessário, mais uma vez, o reconhecimento de juízos éticos para que indivíduo e
sociedade progridam de modo simultâneo.
Quando assumimos as compreensões de Hannah Arendt para os valores da liberdade e da
responsabilidade, também evitamos a relação de oposição entre a esfera privada e a vida
pública. A liberdade individual está fortemente ligada à ação pública, assim como a
responsabilidade individual garante o compromisso com a defesa da ética na esfera coletiva.
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Mais uma vez, indivíduo e sociedade se ligam, potencializando o progresso de ambos em um
mesmo tempo.
No contexto da preservação ambiental, exemplo clássico de desa�o coletivo, é justamente a
superação do consumismo individualista, em benefício de uma ética que associa o consumo
pessoal à preservação coletiva, o caminho para uma relação harmônica entre as duas ordens. Tal
perspectiva é mantida no campo da bioética, na medida em que as novas tecnologias, longe de
se afastarem do saber ético, buscam nesse campo de estudo os parâmetros para adaptarem às
inovações cientí�cas aos valores que regem a sociedade.
Assim, percebemos que a sustentação de uma perspectiva humanista das atividades cotidianas,
baseadas na ética, não só demonstra que é possível ser ético no mundo contemporâneo, mas
que é necessário manter a ética enquanto diretriz de nossas vidas individual e coletiva.
Videoaula: ética e política
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Videoaula da unidade "Ética e Política"
Referências
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
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Benevento Publishing, 2017.
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Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
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WEFFORT, F. C. (Org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2006. v. 1.
,
Unidade 2
Cidadania e direitos humanos
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Aula 1
O que faz um cidadão?
Introdução da unidade
Objetivos da Unidade
Ao longo desta Unidade, você irá:
de�nir os aspectos relevantes no signi�cado da cidadania;
descrever a história dos direitos humanos na modernidade;
debater sobre a democracia, a desigualdade e as diferenças.
Introdução da Unidade
A partir de agora começaremos o percurso didático da unidade 2, Cidadania e direitos humanos.
Convidamos você a entender como toda vez que uma dessas dimensões da vida em sociedade é
afetada, necessariamente, a outra encontra também mais obstáculos para a sua plena
realização. O desa�o maior é entender de que forma, hoje, as sociedades estão (ou não)
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Sociedade Brasileira e Cidadania
considerando seriamente a re�exão sobre as questões implicadas nessas noções e quais são as
consequências disso.
O tema das migrações será mobilizado por nos possibilitar discutir questões importantes sobre a
cidadania e os direitos humanos. A socióloga Saskia Sassen, no seu livro Expulsões (2016),
mostra como a mobilidade forçada de pessoas é hoje um problema, que atinge muitos países do
mundo, sobretudo os do “Sul Global”, países da periferia do capitalismo ou subdesenvolvidos. A
autora discute o que chama de “lógicas de expulsão” – algumas antigas, outras novas – que
estão ativas na contemporaneidade provocando o deslocamento forçado de massas de pessoas.
O quadro dessas expulsões é complexo e abrange desde a questão do aumento das
desigualdades e do desemprego no mundo, a crise e o endividamento das economias dos
países, até o aumento da violência e de con�itos, a destruição da natureza, a expansão das
fronteiras agrícolas, a deserti�cação de regiões e o alagamento de outras. Fato é que há uma
quantidade cada vez maior de países que parece estar sofrendo com essas lógicas de expulsões
sistêmicas.
Essa perspectiva ajuda a compreender por que o Brasil ocupa hoje tanto um lugar de país de
emigração como de imigração. Por um lado, temos problemas muito vivos no contexto atual,
como os altos índices de desemprego, o aumento das desigualdades e da violência, o racismo, a
xenofobia e a intolerância às diferenças, o avanço das fronteiras agrícolas, ou seja, fatores que
podem provocar o deslocamento de população dentro do espaço interno, nacional, e para fora do
país. Por outro lado, o Brasil recebe muitos imigrantes e refugiados de países como Haiti,
Venezuela, Colômbia, Síria, Angola, entre outros, o que é uma consequência e sintoma da
atuação dessas lógicas de expulsão em outras regiões do mundo.
De fato, no atual contexto globalizado, a situação de pessoas deslocadas interna e
internacionalmente é emblemática para pensarmos as fronteiras, os desa�os e as novas
potencialidades da cidadania e dos direitos humanos. Há muitas dimensões desses
deslocamentos que podem ser objeto de investigação. A questão central, que nos acompanhará
ao longo desta unidade, é de como os deslocamentos forçados re�etem tendências de
funcionamento da cidadania e dos direitos humanos no Brasil e no mundo.
A unidade está dividida em três aulas:
aula um: o que faz um cidadão?. Nesta aula, procuramos expor o signi�cado da cidadania,
pensada a partir de três dimensões: local, nacional e global.
aula dois: direitos humanos: por que e para quem?. Nesta aula, trataremos dos direitos
humanos, apresentando como essa instituição apareceu na história moderna, tornando-se
um padrão de referência universal para se pensar a vida em sociedade.
aula três: democracia e cidadania: quem tem o poder?. Nesta aula, iremos dedicar a
pensarmos a democracia, as desigualdades e as diferenças.
Esperamos, en�m, que esse percurso formativo possa encorajá-lo a despertar o cidadão que há
em você, buscando o conhecimento histórico-cientí�co sobre os eixos desta unidade.
Introdução da aula
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Qual é o foco da aula?
Nesta aula, você verá instrumentos para entender como a noção de “cidadão” variou muito ao
longo do tempo
Objetivos gerais de aprendizagem
Ao longo desta aula, você irá:
discutir o objeto de estudos da cidadania;
examinar a Constituição de 88 para a rea�rmação da cidadania;
articular o contexto histórico da cidadania transnacional.
Situação-problema
Esta aula dedica-se ao tratamento de uma questão de fundamental importância para a vida em
sociedade: a cidadania. Como você responderia à pergunta sobre qual é o estado da cidadania
no seu país e no mundo hoje? Será que caminhamos para uma verdadeira evolução da forma e
do conteúdo da cidadania?
Para estabelecermos um termômetro relativo ao sentir-se e ao agir como cidadão, bastaria
iniciarmos com algumas perguntas essenciais: a forma como você ouve falar dos problemas e
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projetos de seu bairro, cidade, país, mundo, encorajam-no a buscar uma participação ativa e
tomar as melhores decisões para atender aos interesses da comunidade?
Ou, ao contrário, afastam-no e desestimulam-no do esforço por entender e participar dessas
decisões que afetam a sua vida e a de todos que estão ao seu redor? Por que será que essa
esfera de atuação política consciente dos reais problemas de uma sociedade parece �car cada
vez mais distante e vazia de sentido? Será que as dinâmicas do alto poder têm hoje interesse
que você se sinta como um cidadão da sua cidade, do seu país e, simultaneamente, do mundo?
De que forma esses problemas atingem sociedades que desrespeitam os direitos humanos?
Nesta aula, veremos que a história do exercício da cidadania tem sido marcada por tensões,
progressos e regressos. Também veremos como o contexto globalizado dos dias atuais, que têm
suas economias, suas sociedades e suas culturas interligadas globalmente, coloca uma
dimensão mais complexa para pensarmos o exercício da cidadania. A nova realidade do número
cada vez maior de pessoas deslocadas coloca desa�os para pensarmos a cidadania, sobretudo
para desvincularmos o seu sentido da esfera restrita ao nacional.
Nesse cenário, como avaliar a “evolução” da cidadania diante do cemitério de corpos de
refugiados que se transformou o Mar Mediterrâneo – cenário emblemático dos barcos lotados
de homens, mulheres, crianças e até bebês, buscando desesperadamente uma esperança de
vida? Das manifestações de racismo e xenofobia, en�m, da negação e da exclusão da cidadania
para as milhões de pessoas deslocadas interna e internacionalmente?
Diante da medida tomada pelo governo de Donald Trump, nos Estados Unidos (EUA), para
separar mais de mil crianças, �lhas de imigrantes indocumentados, dos seus pais? Ao mesmo
tempo, na América do Sul (incluindo o Brasil), milhões de venezuelanos estão também cruzando
fronteiras em busca de uma nova vida. Essas pessoas se deparam com demonstrações de
solidariedade, mas também com violência e desrespeito. Trata-se de um problema complexo,
atual e diretamente ligado à questão da cidadania, que requer re�exão e debates.
Diante dos diversos �uxos migratórios do exterior para o Brasil – causados em grande medida
por guerras, con�itos políticos e miséria – como poderíamos receber e acolher os povos
imigrantes e refugiados, garantindo sua integridade física e moral, seus valores e culturas sem
projetar no estrangeiro o inimigo, o alvo e a causa dos problemas existentes no nosso país? A
fama do Brasil, de país acolhedor para os estrangeiros, tem se con�rmado diante do cenário
crítico que estamos tratando?
Noção de cidadania
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Vamos nos dedicar,
,aqui, a pensar sobre a noção de cidadania. Essa noção é antiga e relaciona-
se a um campo de discussão muito amplo, sendo objeto de estudo de diferentes áreas do
conhecimento. Trata-se de um tema bastante vivo no presente, que gera um enorme interesse,
curiosidade e até mesmo fervorosas polêmicas, justamente pela sua importância para a
compreensão de diferentes aspectos da vida em comunidade. A cidadania, na verdade, exerce
um fascínio para todos que se defrontam com o seu sentido político, colocando-nos a essencial
e difícil questão: o que signi�ca ser parte intrínseca e indissociável de uma coletividade?
Propomos um percurso didático que lhe permitirá entender especialmente o sentido político da
noção de cidadania diante da emergência dos estados-nação na Europa moderna, assim como a
leitura que se produziu do importante modelo de cidadania que existiu na Antiguidade, na Grécia.
______
Assimile
Como você já deve ter visto ao longo de seus estudos, normalmente a discussão sobre cidadania
e política costuma remeter quase sempre à Grécia Antiga. Isso não acontece simplesmente
porque o passado grego foi “mais importante”. Foi o olhar dos europeus modernos, em especial,
mais de um milênio após Aristóteles, que elegeu os gregos como ponto de origem de sua
civilização. Em outros termos, foi com a Europa do Renascimento, das Grandes Navegações e do
Iluminismo que o passado grego e romano se tornou “clássico” – e, nesse sentido, mais
importante do que o passado de outros povos.
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Há um certo processo de “escolha” do passado – a invenção de uma origem – que também criou
uma divisão entre Ocidente e Oriente em um passado distante. Assim, a Europa moderna passou
a se ver como continuidade de uma antiga Grécia, narrada como berço da racionalidade e da
civilização. Essa construção da identidade ocidental separada dos “outros” (TODOROV,1993)
produz efeitos até hoje na forma como a história é narrada, assim como nas relações de poder
entre povos, culturas e nações (SAID, 1993).
______
O cidadão é pensado, portanto, como um ser indissociável da cidade, o que acompanha o direito
de opinar sobre o seu destino. Quando o cidadão ateniense participava das assembleias, não
distinguia os seus interesses pessoais dos interesses da polis.
A possibilidade da iniciativa popular torna a política algo natural da polis e mostra com clareza a
função saudável do debate político, em que tomam conteúdo o exercício da liberdade individual
de expressão e a ação no espaço público. No exercício da cidadania se manifestam elementos
de maior relevância, como a soberania popular e a justiça que emana do povo.
______
Assimile
A �loso�a antiga e a democracia
“Na Filoso�a Antiga, a cidadania formal, referente à condição legal do cidadão, não é
colocada em primeiro plano. A cidadania é situada no campo da política, invocando a
participação ativa e em condição de igualdade de todos os cidadãos na vida
democrática. Essa impostação é retomada pela Filoso�a Contemporânea ao
estabelecer a relação da cidadania com as teorias da democracia, lembrando-nos que
aqueles que vivem sob uma ditadura são de�nidos como súditos, não cidadãos.”
(ENCICLOPEDIA DI FILOSOFIA, 2008, p. 173)
______
Não podemos deixar de fazer uma crítica à exclusão que se fazia, nesse mesmo contexto, das
mulheres, dos escravos, dos “estrangeiros” e de outros grupos sociais, do exercício desse direito.
O que importa perceber, pelo momento, é que o sentido de uma cidadania ativa se colocava
como o principal elemento da vida coletiva na polis.
Esse sentido fez a civilização ateniense ser considerada, já naquela época, um modelo, por
iluminar questões tão essenciais da vida em sociedade, que continuam a ser estudadas depois
de séculos, até nos dias atuais. Vale destacar, no entanto, que o modelo ateniense não se tornou
hegemônico na Antiguidade.
Muitas mudanças na organização política das sociedades mediterrâneas e europeias ocorreram
após esse contexto ateniense. Durante a Idade Média, a Europa Ocidental foi marcada por uma
organização política baseada nas relações feudais e monarquias, que limitavam bastante essa
concepção de cidadão. Além disso, a Igreja Católica detinha grande poder de organização
política nas sociedades da cristandade europeia e o cristianismo também serviu de base
�losó�ca para que, na modernidade, fosse a�rmado um sentido de cidadania completamente
diferente daquele ateniense, muito mais centrado, como veremos adiante, no indivíduo.
Na Idade Moderna, com a emergência dos estados-nação – organização do poder político que
abrange uma população mais numerosa e um território maior –, recupera-se, em alguma medida,
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a noção de cidadania greco-romana, mas procurando estendê-la a um corpo mais volumoso de
pessoas, de forma que o sentido da participação ativa na vida pública acaba sendo colocado em
segundo plano. A Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
ambas de 1789, são marcos importantes dessa rede�nição.
______
Exempli�cando
“José Damião Trindade (1998) coloca em evidência os artigos basilares da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Note que o povo, diferente
do sentido que assumia na democracia em Atenas (demos = povo, cracia = poder),
não é considerado soberano, ou seja, quem exerce o poder: ‘Os homens nascem e são
livres e iguais em direitos’ (art. 1°) e ‘a �nalidade de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem’ (art. 2°). Quais são
esses direitos? São quatro: “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à
opressão'' (art. 2°). A soberania foi atribuída, no artigo 3°, à ‘Nação’ (fórmula
uni�cadora) e não ao povo (expressão rejeitada, pelo que podia conter de
reconhecimento das diferenças sociais). A liberdade (art. 4°: ‘poder fazer tudo aquilo
que não prejudique a outrem’) só pode ser limitada pela lei, que deve proibir as ‘ações
prejudiciais à sociedade’ (art. 5°). A lei ‘deve ser a mesma para todos’ (art. 5°).”
(TRINDADE, 1998, p. 58)
O novo cidadão
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Nesse novo contexto, ser cidadão invoca um regime republicano, que retira os privilégios de
participação política até então restritos à aristocracia, à monarquia absolutista e ao clero, para
a�rmar seu sentido universal, colocando todos os nacionais de um Estado em posição de
igualdade quanto a direitos e a deveres. Ainda que o sentido primeiro da participação na vida
política não seja colocado em primeiro plano, o cidadão moderno tem inegavelmente o direito de
participar do governo de sua vida, de sua cidade e de seu Estado. Lembremos que esse cidadão
moderno, como na Grécia, emerge como um sujeito que também tem deveres civis.
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Só assim uma República poderia garantir o bem-estar de seus cidadãos, ou seja, não fecharia os
olhos para a justiça social e para a construção de uma sociedade menos desigual. Infelizmente,
essa dimensão coletiva da cidadania, do dever cívico para com a coletividade, se tornará uma
voz dissonante em termos de valores e de modelo de atuação política na modernidade.
O princípio do “interesse geral” não ditará os rumos da organização do poder político na
modernidade. O antropólogo francês Louis Dumont, em seu livro O individualismo: uma
perspectiva antropológica da ideologia moderna (1985), coloca em evidência como o indivíduo,
ao contrário do que dizia Rousseau, se a�rmou como um sujeito de direitos e deveres que não
será mais visto, como na Grécia, como uma parte intrínseca e indissociável da coletividade: ou
seja, a noção de indivíduo, que existe independentemente da comunidade, ganha força nesse
período.
Além disso, na modernidade, continua existindo a problemática interdição da participação na
vida política de mulheres e de grupos sociais de baixa renda, além de grupos étnicos (no caso
das colônias europeias, sobretudo os indígenas e os negros) e também dos estrangeiros (não
nacionais).
,A comparação do signi�cado da cidadania na Grécia e na modernidade ilumina, na verdade, o
que diversos críticos têm apontado como o principal limite do desenvolvimento da cidadania. No
estado-nação, caminha-se muito mais em direção a um modelo de organização política da
sociedade que valoriza a extensão do direito de voto a um número maior de pessoas.
O que está em jogo é a representatividade desse número extenso de cidadãos por partidos, não a
esfera da ação política e da participação consciente. Esses elementos problemáticos, além de
outros que podem ser discutidos, mostram como não é possível a�rmar que a passagem do
tempo signi�ca necessariamente uma evolução da forma e do conteúdo da cidadania, bem
como de seu exercício.
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No século XX, por exemplo, há tensões que apontam para diferentes direções a �m de
pensarmos a cidadania. Por um lado, houve lutas importantes empreendidas por grupos sociais
– mulheres, operários, negros, indígenas – para a conquista do direito ao voto, que resultaram
em progressos importantíssimos, como o reconhecimento do voto feminino na maioria dos
países; o �m do voto censitário (vinculado a um patamar de renda); o reconhecimento dos
direitos civis dos negros nos Estados Unidos; o �m do regime de apartheid na África do Sul e em
outros territórios ainda submetidos ao regime de colonização, que excluíam os nativos do direito
à cidadania; o reconhecimento da diversidade e do direito à cidadania dos povos indígenas nas
Américas do Sul e do Norte.
Por outro lado, talvez o século XX seja o exemplo mais explícito de grandes retrocessos para
pensarmos a cidadania. Os regimes totalitários, como o fascismo na Itália, o nazismo na
Alemanha, e o stalinismo na URSS, tinham como característica principal a negação dos direitos
políticos da população em favor de um regime autoritário com poderes ilimitados para tomar
todas as decisões do governo de um Estado. O direito de participação política era considerado
uma ameaça a ser combatida com a força das armas.
Na América Latina, o século XX também foi marcado por ditaduras que se baseavam nesse
mesmo princípio e se disseminaram como modelo de exercício do poder político em quase todo
o continente. Considerando o contexto brasileiro, percebemos que a participação no poder
político foi historicamente restrita a poucas pessoas.
Na América portuguesa, sob a lógica do absolutismo monárquico, a maioria da população –
composta de negros considerados escravos, indígenas, e outros grupos subalternos – era
excluída do direito de participação política formal no Estado Colonial. Com a independência e o
período imperial, a renda funcionava como critério central de exclusão do exercício da cidadania.
Mesmo quando o regime republicano foi instaurado (1889), o pertencimento ao sexo masculino,
o nível de escolaridade e as relações de trabalho seguiam excluindo a maior parte da população.
Por esse motivo, há uma discussão bastante importante sobre o caráter oligárquico (restrito a
um pequeno grupo de pessoas) do funcionamento da República no Brasil. Ainda que o direito
formal de voto tenha se alargado para toda população, por meio de reivindicação desses grupos,
outros mecanismos de coerção da livre escolha de representantes foram historicamente
praticados, como o voto de cabresto.
No que se refere à substância da cidadania – direitos políticos básicos, acesso à renda/trabalho
dignos, educação e saúde de qualidade, moradia, entre outros – a referida condição de
“estrangeiridade” da maioria da população brasileira continua sendo um problema até hoje.
A ruptura radical em relação ao poder de exercício da cidadania ocorreu durante o regime
ditatorial (1964-1984), que representa uma página da história do Brasil a qual expressa o total
desrespeito aos sentidos da cidadania discutidos até agora, sejam aqueles da Antiguidade,
sejam aqueles das democracias liberais da modernidade.
______
Pesquise mais
Para saber mais sobre o debate a respeito das violações dos direitos humanos no período
anterior ao da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), o site do projeto “Brasil: Nunca Mais” é uma
valiosa fonte:
https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548945015_e78fd7edc9b0ee2e3e50845028203e11.pdf
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[...] é a mais ampla pesquisa realizada pela sociedade civil sobre a tortura política no
país. O projeto foi uma iniciativa do Conselho Mundial de Igrejas e da Arquidiocese de
São Paulo, os quais trabalharam sigilosamente durante cinco anos sobre 850 mil
páginas de processos do Superior Tribunal Militar. (BRASIL, 2016)
Constituição de 88
Foi ao �ndar o último regime de exceção que se produziu a Constituição Federal de 1988
(BRASIL, 1988): o mais importante marco histórico de rea�rmação da cidadania e de restituição
de um regime democrático, que possibilita a participação política dos cidadãos. A soberania
popular foi rea�rmada em seus artigos, que tratam das questões mais essenciais da
organização da sociedade brasileira e estão acima de qualquer outra legislação do país, pois
contêm os princípios de um Estado baseado em direitos que podem ser reivindicados por
qualquer cidadão do país.
Esse pacto federativo emerge em um momento histórico no qual o sentido de participação da
cidadania representava uma das principais bandeiras de luta da sociedade brasileira e de seus
diferentes movimentos sociais. Nesse momento, os cidadãos brasileiros e não nacionais
residentes no país denunciavam com toda força os prejuízos causados à sociedade por um
regime que nega (ou limita) a possibilidade de a população agir politicamente.
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Simultaneamente, a�rmava-se um projeto de sociedade que, além de garantir o direito civil de
representatividade nas decisões políticas, também referendou uma cidadania social na qual os
direitos básicos – como a saúde, a educação, o trabalho digno, a moradia, o meio ambiente –
ampliam o signi�cado da noção de cidadania. O acesso universal a esses direitos básicos para
garantir a cidadania está previsto na nossa Constituição como um dever do Estado e da
sociedade brasileira.
Sem dúvida, a Constituição de 1988 é a maior expressão de um pacto de civilização que
devolveu ao Brasil a possibilidade de caminhar em direção ao respeito da cidadania. O que não
signi�ca que todos os seus artigos sejam perfeitamente aplicados na realidade da sociedade
brasileira. De fato, são inúmeros os impasses substanciais da cidadania existentes na realidade
do funcionamento da sociedade brasileira com suas antigas e novas faces das desigualdades,
que acompanham a exclusão da cidadania.
Basta pensarmos, por exemplo, no retrato das grandes metrópoles como São Paulo, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza – ou qualquer outra grande cidade do país – onde uma parcela
signi�cativa da população é excluída desses direitos.
Você já reparou como as calçadas das nossas cidades estão cada vez mais povoadas por
pessoas que vivem em situação de rua? Esse cenário nos provoca a pensar os limites da
cidadania, determinados sobretudo pelos imperativos econômicos que modelam o
funcionamento das sociedades e fazem da renda um requisito de acesso à cidadania.
Mas, vamos dar um passo nessa re�exão. Essa constatação não exclui a importância de
entendermos que a Constituição é um instrumento para que a cidadania também possa ser
efetiva a essas pessoas. Por um lado, os direitos sociais nela contemplados colocam como um
dever do Estado democratizar o acesso aos direitos fundamentais, ou seja, criar instituições que
possibilitem a oportunidade de um trabalho digno, educação, saúde, moradia, dentre outros
direitos.
Por outro lado, a Constituição resguarda o regime democrático e situa essas pessoas – a
despeito de viverem em situação de rua – como sujeitos de direito que, portanto, podem
reivindicá-lo. Qual seria, então, a melhor forma de ter os direitos da Constituição respeitados?
Será que a abolição desta Constituição seria o melhor caminho?
,A resposta a essa pergunta é
muito simples: não se conquista direitos abolindo direitos! O exercício da participação ativa, da
reivindicação desses direitos e da luta para que sejam efetivados é o único caminho para que a
cidadania no Brasil deixe de ser apenas um direito formal e se torne realidade.
Cidadania no século XXI
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Depois de percorrer diferentes contextos e épocas históricas que nos ajudam a re�etir sobre a
complexidade implicada na discussão do tema da cidadania, não poderíamos deixar de tratar de
uma dimensão que se torna cada vez mais evidente no contexto globalizado do século XXI: a
cidadania transnacional. Até aqui, conseguimos re�etir sobre a dimensão local, expressa no
sentir-se membro de um corpo político no espaço das cidades e do estado-nação.
Agora, daremos um passo à frente na compreensão do sentido da cidadania para além da
dimensão local. Há diferentes perspectivas para explorar esse aspecto da cidadania. Se
considerarmos, por exemplo, a associação da ideia cidadania com o sentido universal da
condição humana, entendemos que, já no século XVIII, havia movimentos culturais, como o
Iluminismo, que defendiam a dimensão cosmopolita da cidadania, ou seja, para além da fronteira
nacional.
Isso é bastante curioso, pois, naquela época, o grau de integração econômica, política e cultural
entre os estados-nação era incomparável com o dos dias atuais. No entanto, a conscientização
da esfera internacional como um espaço necessário para a efetivação dos direitos de cidadania,
para além do espaço nacional, já era colocado pelos pensadores iluministas.
A necessidade dessa conscientização do transnacional é ainda mais urgente na atualidade. Com
a integração das economias, das �nanças, das culturas e com o aumento no volume dos
deslocamentos populacionais em escala global, muitos autores têm mostrado como o espaço
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
do nacional �ca ainda mais recortado por um mosaico de nacionalidades, culturas, religiões e
etnias. É, por isso, uma contradição que essas pessoas sejam excluídas do exercício de seu
direito de cidadania e de participação política.
Do ponto de vista das pessoas que se deslocam internacionalmente, o direito de cidadania não
pode se restringir às fronteiras nacionais. Da mesma forma que determinadas instituições
exercem uma dimensão global do exercício do poder político – como a Organização das Nações
Unidas (ONU), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) –, com decisões que
impactam o destino de muitas nações, o aumento da existência de imigrantes e refugiados
coloca em questão por que a cidadania deve permanecer restrita à nacionalidade.
Saskia Sassen – especialista em globalização e processos transnacionais, conhecida pelo
conceito de “cidade global” – oferece uma rica re�exão sobre essa questão. A autora se pergunta
se o aumento de imigrantes e refugiados nos Estados é sinal de que as fronteiras nacionais
tendem a desaparecer e se as formas de dupla/tripla cidadania denotam uma tendência para se
pensar esse tema.
Importa percebermos que essa re�exão nos traz a dimensão transnacional da cidadania como
uma esfera de discussão de enorme importância. Já que vivemos em um mundo globalizado, a
cidadania não pode mais ser analisada puramente a partir do nacional. Utilizar esse
“nacionalismo metodológico” signi�ca negar a cidadania a milhões de pessoas que residem em
outros países ou que são obrigadas a deixar seus países de origem.
Lembremos que, do ponto de vista cosmopolita, essa visão redutiva da cidadania
necessariamente nega a condição humana dessas pessoas. Sobretudo, é necessário perceber
que o exercício da cidadania, em particular com o desenvolvimento das tecnologias de
comunicação e informação, assume hoje uma dimensão global. Esse alcance espacial traz
consigo inúmeras potencialidades para pensarmos o signi�cado da ação cidadã.
______
Assimile
A cidade de São Paulo é um laboratório vivo para entendermos o sentido da cidadania
transnacional. Em um passado relativamente recente, essa cidade era sobretudo formada por
imigrantes europeus. Hoje, São Paulo é considerada uma “cidade global”, por ser destino de
moradia para bolivianos, haitianos, senegaleses, sírios, moçambicanos, dentre um leque muito
diversi�cado de nacionalidades do mundo inteiro.
Ali, você pode ter contato com muitas iniciativas e organizações dos imigrantes e refugiados,
que, mesmo não tendo direito de voto no Brasil, reivindicam seus direitos e espaços para
expressar suas culturas e identidades.
Cidadania ambiental
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Nesse ponto, adentramos no último tópico desta aula que diz respeito à relação entre
consciência ambiental e a cidadania. Pensar nessa relação é ideal para retomarmos diversos
signi�cados da cidadania até aqui tratados.
As décadas de 1970 e 1980 são marcos da emergência de um debate ambiental que questiona o
modelo de desenvolvimento que se espalhou pelo mundo (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010). Além
das crises econômicas, esse período acompanha também recorrentes crises ambientais. O
desastre de Chernobyl (1986) passa a ser o símbolo do despertar da consciência de uma
“cidadania verde”, que não está descolado do sentido da cidadania transnacional.
Começa-se a re�etir com mais força sobre os impactos para a população local, mas também
para a vida humana no mundo todo, de ações que prejudicam a natureza, como a mudança do
curso de um rio, a poluição das águas, a expansão das fronteiras agrícolas e a utilização dos
agrotóxicos e transgênicos, além da destruição das �orestas.
Perceba que a dimensão política da cidadania está inserida também na discussão sobre o meio
ambiente. Um olhar ambientalista nos permite examinar os problemas que as mudanças
ambientais colocam para o processo político moderno, em particular para o exercício da
cidadania.
______
Re�ita
Você acharia estranho que nos primeiros artigos da nossa Constituição estivesse previsto o
direito da natureza? Talvez você esteja pensando que a natureza não pode ser considerada um
sujeito de direito. No entanto, no Equador esse direito está previsto na Constituição (ACOSTA,
2016) e transformou-se em uma ferramenta de exercício da cidadania ambiental. Você acredita
que esse exemplo poderia nos ajudar a repensar nossa cidadania no Brasil?
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Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
O exercício da cidadania ambiental chama atenção, portanto, à �nitude dos recursos ambientais
e à ameaça para a humanidade do uso predatório dos bens naturais (Acosta, 2016). Da mesma
forma, somos chamados para a re�exão de que um desastre ambiental não pode mais ser
considerado como local ou nacional, mas sim global, já que seus efeitos ameaçam a vida na
terra.
Essa cidadania transnacional coloca, portanto, a articulação entre o local e o global como
necessária para a conscientização desses impactos ecológicos e, simultaneamente, para a
busca de ações políticas para enfrentá-los.
O rompimento da barragem de Santarém, no município de Mariana (MG), causado pelo não
cumprimento de procedimentos de segurança pela Usina Samarco, é emblemático para
pensarmos essa questão. São incalculáveis os impactos desse crime que foi considerado o
maior dano ambiental da história do Brasil devido à enxurrada de lama tóxica jogada em vários
rios (principalmente o Rio Doce, que desemboca no mar); a destruição de uma cidade inteira, São
Bento; a contaminação de muitas pessoas das comunidades locais; o prejuízo econômico e os
danos à vida humana em geral.
Um dos desa�os dos movimentos dos atingidos pelas barragens é justamente fortalecer a
articulação de suas lutas com os movimentos ambientalistas internacionais para reivindicar a
reparação de danos para a população local (que até hoje permanece ignorada) e para evitar
novas catástrofes.
Di�cilmente um movimento ambientalista despreza a necessidade da ação global para a defesa
do meio ambiente. Vemos que há uma ampliação do conceito de cidadania que nos permite não
,apenas reconhecer a natureza como um sujeito de direito, como também discutir questões
variadas relativas, por exemplo, à dimensão social e às relações étnico-raciais implicadas na
questão ambiental, à legitimidade de atuação dos movimentos ambientalistas, à noção de justiça
ecológica local e global.
De fato, a cidadania ambiental ilumina um sentido universal, essencialmente coletivo, para além
da nacionalidade, e clama pela urgência da ação e participação ativa cidadã em defesa do meio
ambiente de forma articulada, em âmbito local, nacional e global. Notamos, portanto, que a
passagem do súdito ao cidadão se torna ainda mais complexa ao entendermos as dimensões da
cidadania.
Os desa�os do pleno exercício da cidadania são certamente muitos, mas não há dúvida de que a
potencialidade dessa articulação é a única forma de enfrentarmos as barreiras à cidadania que
se colocam cada vez mais em nossos dias.
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Pesquise mais
A obra, organizada por Jaime e Carla Pinsky, História da cidadania (2010), fornece um importante
panorama da cidadania desde a Antiguidade. O capítulo Cidadania ambiental: natureza e
sociedade como espaço de cidadania (p. 545-562), de Maurício Waldman, apresenta bases mais
concretas para se re�etir sobre uma nova concepção de cidadania hoje em debate, que
considera mais enfaticamente as relações entre as sociedades e o meio ambiente.
Conclusão
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Diante do cenário mundial que buscamos analisar ao longo da aula e do histórico da cidadania e
dos direitos humanos que percorremos, como responder às questões colocadas inicialmente?
Quais caminhos as políticas internacionais devem tomar diante das grandes crises de
refugiados? O Brasil, país considerado hospitaleiro e com uma população cordial e pací�ca, tem
sido capaz de receber e acolher os povos imigrantes e refugiados, garantindo sua dignidade?
Aprofundamos a problematização com alguns dados: segundo a Agência da ONU para
Refugiados (ACNUR, 2018), a cada minuto, 20 pessoas são forçadas a se deslocar. Em 2018,
essa agência estimou a existência de 68,5 milhões de pessoas nessa condição no mundo, das
quais cerca de 40 milhões são deslocados internos, 25,4 milhões são refugiados (mais da
metade com menos de 18 anos de idade) e 3 milhões são solicitantes de refúgio.
Os desastres ecológicos ganham importância para explicar esses deslocamentos, no presente e
no futuro. Até 2050, estima-se que 250 milhões de pessoas serão deslocadas devido a causas
ambientais – é como se mais do que a população inteira do Brasil fosse deslocada. Além dos
refugiados, é também importante levar em conta o quadro dos demais imigrantes (pessoas que
moram fora do país de origem), estimado pela Organização Internacional para Migrações (OIM)
em 244 milhões em 2015.
As sociedades contemporâneas estão passando por uma grande transformação populacional
devido a esses deslocamentos. Justamente por esse motivo, as migrações internacionais se
transformaram em uma questão central para entendermos diversos aspectos do funcionamento
das sociedades, como o mercado de trabalho, a educação, a cultura, a identidade e
particularmente a cidadania.
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Você deve ter acompanhado as notícias sobre o caso de crianças, �lhas de imigrantes
indocumentados, que foram separadas de seus pais por uma medida do governo de Donald
Trump, feita para desencorajar essas pessoas de irem para os Estados Unidos. Também vemos
frequentemente em jornais as fotos de barcos no mar Mediterrâneo (entre a África e a Europa),
lotados de homens, mulheres, crianças e até bebês, que fogem dos fatores de expulsão em seus
países na busca por uma nova esperança de vida, porém, ao chegarem nos países europeus,
encontram muitas barreiras para poderem desembarcar.
Essas notícias evidenciam como as fronteiras dos Estados mais ricos do mundo tendem a ser
predominantemente fechadas para esses imigrantes e refugiados, apesar de muitos desses
países serem signatários de Tratados Internacionais que protegem a condição de imigrante,
refugiado. Como explica o sociólogo italiano Pietro Basso, os Estados tendem a adotar um
posicionamento restritivo, quando não criminalizante (dado o suposto crime de atravessar
fronteiras), em relação a esse grupo social.
Por esse motivo, no atual cenário mundial de deslocamentos em massa, o imigrante defronta-se
com inúmeras barreiras à cidadania e pressões. Segundo Basso (2010), as políticas dos Estados
são pautadas essencialmente na ideia da “convivência forçada” e do “choque de civilizações”,
que alimentam um quadro geral de “agudização” do racismo, xenofobia, discriminação, violência
policial e exposição à exploração, na vida cotidiana e no trabalho, desse grupo social.
No atual contexto de crise e de ascensão de partidos nacionalistas, essa ideia é constantemente
mobilizada, fazendo com que a tendência das políticas imigratórias seja a de restringir e
selecionar a circulação de pessoas. No entanto, isso não signi�ca que essas fronteiras realmente
podem se fechar para o trabalho imigrante no atual grau de internacionalização das economias e
das sociedades.
Por exemplo, a economia dos Estados Unidos pararia se todos os imigrantes tivessem de deixar
aquele país. Além disso, esses imigrantes são sujeitos humanos, estão ali contribuindo com o
seu trabalho, com suas culturas e línguas para o funcionamento e a construção daquela
sociedade.
Embora o Brasil ainda tenha uma porcentagem muito baixa de estrangeiros, estimada entre 1% e
1,5% da população, não está separado desse contexto internacional. As notícias sobre a
presença desses imigrantes e refugiados no país têm se tornado cada vez mais comuns.
Tivemos dois casos, dos haitianos e dos venezuelanos, que deram mais visibilidade a essa
questão nos últimos anos.
A pergunta que questiona se o Estado brasileiro tende a se abrir ou a se fechar para o
reconhecimento da cidadania desses imigrantes e refugiados não pode ser respondida sem
primeiramente levarmos em consideração o contexto internacional.
Se analisarmos o contexto nacional, entendemos que apesar de o Brasil ter uma sociedade
formada por imigrantes (africanos, europeus, asiáticos etc.) e ter se apoiado secularmente no
trabalho dessas pessoas, hoje coloca muitas barreiras para o reconhecimento da cidadania dos
“novos” imigrantes e refugiados. Essas barreiras são de ordem formal, relativas à concessão de
visto e ao reconhecimento de refúgio e da cidadania brasileira.
O processo para conseguir a documentação é excessivamente burocratizado e caro para os
imigrantes. Muitas vezes, isso acaba provocando a indocumentação de muitos deles, o que, na
prática, signi�ca a exclusão da cidadania, ou seja, o não reconhecimento desses imigrantes
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Sociedade Brasileira e Cidadania
como sujeitos de direitos. Para a concessão da cidadania brasileira, esse processo é ainda mais
burocratizado e de difícil acesso.
Se re�etirmos sobre o aspecto substancial dessa cidadania, podemos entender que esses
imigrantes e refugiados vivem os fatores de expulsão na própria sociedade de origem, por isso
são obrigados a migrar, e ao chegarem no Brasil se defrontam, novamente, com muitas barreiras
da cidadania – como o acesso a um trabalho digno, à moradia, à educação de qualidade –, que
se colocam também para os brasileiros.
Além dos problemas formais, com a lei, os imigrantes e refugiados precisam lidar com uma
sociedade nem sempre amistosa. Como sabemos, uma parte da população brasileira pode
enxergar os imigrantes como seus rivais na busca pelos direitos de um cidadão. Mas a questão
central é entendermos que a negação da cidadania para esses sujeitos não é o meio e�caz para
se conseguir a efetivação desses direitos para os brasileiros.
Essa ideia tem sido instrumentalizada pelos Estados, sobretudo pelos que são governados por
partidos nacionalistas. Todavia, de forma alguma essa exclusão implica que os direitos dos
nacionais estejam sendo de fato protegidos e respeitados.
A lógica de exclusão dos estrangeiros,
,como vimos aqui, acompanha a história da cidadania. No
entanto, essa lógica tende a se tornar mais agressiva nos momentos de crise e de ascensão de
políticas mais autoritárias. Além de a reconhecermos, temos de lembrar que a cidadania, hoje, no
mundo globalizado, é uma cidadania transnacional, que não se limita ao território do estado-
nação. Essa perspectiva signi�ca proteger também os brasileiros e seus direitos, mas, antes,
reconhecer a dignidade e as garantias legais de todo ser humano.
Aula 2
Direitos humanos: por que e para quem?
Introdução da aula
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Qual é o foco da aula?
Nesta aula, trataremos de um importante dilema da sociedade moderna: a a�rmação, por um
lado, dos direitos humanos, e por outro lado, das lógicas de punição que também se expressam
nos crimes contra a humanidade.
Objetivos gerais de aprendizagem
Ao longo desta aula, você irá:
apontar as perspectivas da noção moderna de direitos humanos;
identi�car os ideais da Declaração Universal dos Direitos Humanos;
debater sobre o punitivismo através de Michel Foucault.
Situação-problema
Veremos, um dos fenômenos bastante ativos na contemporaneidade envolvendo os dois lados
desse dilema (direitos humanos e lógicas de punição) diz respeito aos deslocamentos forçados
de população. De fato, as diferentes formas de desrespeito aos direitos humanos, que se
traduzem na impossibilidade de vida no próprio local ou país de origem, provocam esses
deslocamentos.
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Todavia, a tendência dos Estados tem sido tratar essas pessoas como potenciais criminosos,
valendo-se de uma lógica criminalizante e punitivista para governar esses �uxos de pessoas,
com variadas técnicas de vigilância e controle nas fronteiras e dentro dos próprios países.
As declarações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e de governantes como Viktor
Orban (Hungria) e Matteo Savini (Itália) exempli�cam construção de um discurso que associa
automaticamente essa população ao “crime”, estabelecendo um clima de insegurança e medo
que tem efeitos práticos concretos de desrespeito aos direitos humanos dessas populações
também nos países para os quais elas emigram (ou tentam emigrar).
No Brasil, como veremos, grupos internos, como a população negra e periférica, são as maiores
vítimas dessa lógica punitivista. No entanto, o país não está separado do contexto internacional
de aumento das migrações e tende a receber, cada vez mais, deslocados forçados e refugiados
de outros países.
Sobretudo, é importante lembrarmos que o Brasil também já foi, durante a ditadura, produtor de
refugiados. Esta aula nos ajudará a entender os fatores de desrespeito aos direitos humanos
nesse período obscuro da nossa história e da de outros países da América Latina.
Naquele momento, os brasileiros foram reconhecidos como refugiados, portanto tiveram seus
direitos humanos respeitados em diversos países, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália,
Espanha, Portugal e outros. Hoje, segundo dados do Comitê Nacional Para Refugiados (CONARE,
2018), nós recebemos solicitantes de refúgio de mais de 80 países, em particular haitianos,
senegaleses, venezuelanos, sírios e angolanos.
Você avalia que o Brasil caminha para o reconhecimento do direito de refúgio e também dos
direitos humanos dessas pessoas ou, ao contrário, acredita que o país tende a assumir políticas
que associam ideologicamente a imigração ao crime – o que se chama hoje de “crimigrar”
(MORAES, 2016)?
Iniciaremos com o tratamento dos direitos humanos na Modernidade e seu desenvolvimento no
berço do Iluminismo. Além de indicarmos a legislação de referência desses direitos, oferecemos
elementos para a compreensão de como o Iluminismo foi fundamental para a a�rmação de
princípios-base de enorme importância e validade para os tempos atuais. Em seguida,
abordaremos os crimes contra a humanidade e seus casos emblemáticos para entendermos
questões vivas até hoje, que colocam desa�os para as sociedades, até mesmo a brasileira.
Por �m, a partir dos ensinamentos do �lósofo Michel Foucault e de autores que o atualizaram,
trataremos das lógicas punitivistas na sociedade moderna, sua relação com o saber-poder e sua
plena aplicação na contemporaneidade.
Noção de direitos humanos
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Nesta aula, vamos começar trabalhando com a noção moderna de direitos humanos.
Deixaremos de discutir como esse direito era concebido nos séculos precedentes – a partir da
perspectiva religiosa e �losó�ca –, para nos concentrarmos em um período de enorme riqueza
da sociedade ocidental, denominado Iluminismo. Trata-se de um movimento cultural que nasce
na Europa do século XVIII, no bojo do processo de transição da sociedade feudal à capitalista.
O Iluminismo representa um marco histórico de mudanças signi�cativas na forma de conceber o
mundo, com re�exos nas mais diversas áreas do pensamento: �loso�a, literatura, artes, física,
matemática, direito. Esse período é chamado de “século das luzes” por defender como valor
central o conhecimento, a razão e o progresso da ciência e da cultura.
A imagem da luz era colocada como o antídoto ao que se considerava um atraso e, sobretudo,
um entrave ao desenvolvimento dos sujeitos e das sociedades: a ignorância, a superstição, o
fanatismo religioso, a intolerância e os abusos da Igreja e do Estado. A razão passa a ser
entendida como necessária, portanto, para iluminar uma nova visão de mundo, fundada em
valores como tolerância religiosa, liberdade de pensamento, liberdade política, liberdade religiosa,
direito de resistência à tirania, separação do Estado e da religião (laicidade), educação universal.
Muitos desses valores, que foram a�rmados por diversos pensadores, exerceram um papel
importante para efetivar mudanças no plano jurídico, político e econômico-social daquela época
e permanecem sendo fundamentais para pensarmos as sociedades até hoje.
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� Pesquise mais
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Sociedade Brasileira e Cidadania
A liberdade ou a morte (1795), de Jean Baptiste Regnault. Fonte: Wikimedia.
Contemple a pintura de Jean Baptiste Regnault (1754-1829), A liberdade ou a morte (1795).
Repare como a alegoria sugerida pelo pintor francês retrata muito bem o espírito da época do
Iluminismo. Sem dúvida, o questionamento que essa imagem provoca é ainda bastante atual.
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Acreditar na razão e na sua capacidade libertadora também acompanhava um ideal de
sociedade que tinha que se aperfeiçoar, progredir, caminhando em direção às luzes propiciadas
pelo conhecimento cientí�co, baseado na observação e na demonstração empírica, e não em
dogmas. Essa questão será depois muito discutida, e também criticada, sobretudo por teorias –
por exemplo, Adorno e Horkheimer (1986); Foucault (1994) – que polemizam em relação ao fato
de que a racionalidade moderna, a técnica e a ciência impliquem automaticamente na
emancipação humana.
A noção de direitos humanos na modernidade é gerada nesse rico berço cultural do Iluminismo e
não deixa de re�etir uma forma de crítica à sociedade, com um papel também transformador,
que, naquela época, foi encabeçado pela nascente classe burguesa. O liberalismo guiava os
princípios econômicos, e o jusnaturalismo – origem do latim ius naturale, direito natural – o
Direito, com base na doutrina que considera todos os indivíduos portadores de direitos inatos
naturais.
É importante perceber que a doutrina jusnaturalista, que tem diferentes vertentes teóricas,
mesmo na Antiguidade e na Idade Média, é rea�rmada e desenvolvida no período iluminista a
partir de uma base racional (não religiosa). A igualdade e a liberdade formais são norteadoras
dessa concepção jusnaturalista moderna.
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Há quatro ensinamentos iluministas que são fundamentais para a re�exão sobre os direitos
humanos, quais sejam:
1. a autonomia do indivíduo: que é considerado como um ser capaz de tomar decisões
autonomamente, de ter liberdade para pensar, questionar, criticar; daí
,e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (BRASIL, 1988, grifo
nosso).
Imagine, agora, que uma família muito rica seja proprietária de vários imóveis distribuídos pelo
país, muitos dos quais permanecem sem qualquer utilização por anos seguidos. Outra família,
em condição de pobreza extrema, não tem recursos para pagar por uma habitação e decide
ocupar um desses imóveis abandonados. Repare que há um choque entre o direito de
propriedade da família rica e o direito à moradia da família pobre. Qual seria, então, a conduta
correta a ser tomada diante desse impasse? O ideal seria remover a família pobre, sob a
alegação de que a família rica não tem culpa da pobreza alheia e não deve ter sua propriedade
atingida? Ou, inversamente, o certo seria proteger a moradia do grupo em necessidade, uma vez
que a família rica abandonou o imóvel em questão?
Note que, ainda que existam normas jurídicas especí�cas para tratar do caso concreto, as duas
posições são justi�cáveis a partir de uma perspectiva moral, isto é, nos dois posicionamentos
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Sociedade Brasileira e Cidadania
existem certos juízos de valores que determinam qual a conduta correta, qual o comportamento
a ser observado – o dever ser – para que se atinja a solução justa, sob um ponto de vista moral.
Se é verdade que os juízos morais podem concordar com uma norma jurídica – ou mesmo com
duas normas que, em um caso concreto, são con�itantes, como acabamos de ver –, é
importante notar que esses valores são resultado de uma consciência moral, a qual re�ete
valores e sentimentos pessoais. Assim, na formação da moral, mais importante do que a
existência de uma lei, estão as convicções individuais, que podem ou não coincidir com a norma
jurídica.
Nesse sentido, a moral de uma pessoa pode até mesmo contrariar uma norma social. Veja como
a opinião do entrevistado a seguir questiona a moralidade de uma série de regras brasileiras:
"“Não almoço à custa do dinheiro do contribuinte”, me disse certa vez o juiz sueco
Göran Lambertz, em tom quase indignado, na Suprema Corte da Suécia. A pergunta
que in�amou a reação do magistrado era se, assim como ocorre no Brasil, os juízes
da instância máxima do Poder Judiciário sueco têm direito a carro o�cial com
motorista e benefícios extra-salariais como auxílio-saúde, auxílio-moradia,
grati�cação natalina, verbas de representação, auxílio-funeral, auxílio pré-escolar para
cada �lho, abonos de permanência e auxílio-alimentação. “Não consigo entender por
que um ser humano gostaria de ter tais privilégios. Só vivemos uma vez e, portanto,
penso que a vida deve ser vivida com bons padrões éticos. Não posso compreender
um ser humano que tenta obter privilégios com o dinheiro público”, acrescentou
Lambertz. “Luxo pago com o dinheiro do contribuinte é imoral e antiético”, completou
o juiz sueco." (WALLIN, 2018, [s.p.], grifo nosso)
Nesse ponto, o juiz sueco salienta que a ética deve orientar a condução de nossas vidas,
justi�cando com esse conceito sua reprovação da utilização de recursos públicos para o
pagamento de benefícios a magistrados.
O termo “ética” decorre da palavra grega ethos, cujo signi�cado em nosso idioma se relaciona às
ideias de “modo de ser” ou “bom costume”, revelando que, ao menos desde a Grécia Antiga, o
homem se preocupa em analisar de que modo as condutas dos indivíduos podem contribuir para
uma convivência satisfatória.
Assim, a ética se consolida como o campo do conhecimento focado na determinação racional
de quais seriam as �nalidades boas e más a serem buscadas pelos seres humanos, investigando
a essência das condutas consideradas certas ou erradas, os fundamentos dos princípios e
valores que fundamentam os juízos, obrigações e deveres que condicionam e quali�cam o
comportamento humano.
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� Pesquise mais
A concepção aristotélica sobre a ética encontra sua mais signi�cativa elaboração na obra Ética a
Nicômaco, de Aristóteles. Nesse livro, supostamente dedicado ao �lho ou ao pai do �lósofo,
ambos nomeados Nicômaco, o �lósofo grego investiga os fundamentos do caráter e o exercício
das virtudes humanas, motivo pelo qual a obra se tornou um clássico da re�exão ética.
Para se aprofundar no assunto proposto leia o resumo da obra "Ética a Nicômaco" feito pela
Doutora em Estudos da Cultura Rebeca f*cks.
https://www.culturagenial.com/livro-etica-a-nicomaco/
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Sociedade Brasileira e Cidadania
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Trata-se, nesse contexto, de uma disciplina fortemente normativa, isto é, que prescreve ações e
julgamentos a serem valorizados na condução de nossas vidas, em vez de apenas retratar a
realidade observada. Adicionalmente, ao valorizar a razão enquanto método de se perceber o
caráter correto ou incorreto de uma ação, a ética fortalece a responsabilização individual por
uma conduta, já que o homem tem mecanismos racionais para identi�car a justiça ou injustiça
de seus atos.
Entretanto, nunca é demais lembrar, a ética não é um saber encerrado, cujas determinações já se
encontram totalmente reveladas, mas, sim, o que estabelecerá fundamentos amplos para a
apreciação da conduta adequada a uma situação especí�ca.
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Assimile
Há ética na organização de um formigueiro? Um animal pode ser considerado mau sob o ponto
de vista ético? Assista à discussão "A ética não é uma tabela pronta" entre o �lósofo Mário
Sérgio Cortella e o jornalista Clóvis de Barros Filho e assegure-se de que compreendeu os
conceitos até aqui trabalhados.
Moral versus Ética
https://www.youtube.com/watch?v=NHwfWTZ-utg
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A resposta à pergunta “qual a conduta correta para o aprimoramento de nossa convivência
coletiva?” acaba por abranger diferentes componentes da vida social: a organização política, as
ciências e a moral, por exemplo, exercem in�uência sobre as formas de se pensar a ética. A
respeito dessa última variável mencionada, a moral, alguns esclarecimentos se fazem
necessários e serão apresentados a seguir.
Como podemos constatar na entrevista com o juiz sueco, a classi�cação de que algum
comportamento seria “moral” ou “imoral” produz efeitos semelhantes aos da a�rmação de que
uma conduta seria “ética” ou “antiética”. Isso acontece porque esses dois termos são
cotidianamente utilizados como se fossem conceitos equivalentes, e mesmo em obras clássicas
de nosso campo de estudo a quali�cação “moral” é utilizada na apreciação do comportamento
ético. Há que se reconhecer, entretanto, a existência de importantes diferenças entre esses
conceitos, conforme estudaremos a seguir.
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Embora tanto a ética quanto a moral busquem a orientação do que é certo e errado no agir
humano, a ética pressupõe que essa quali�cação é resultado de uma elaboração baseada na
coletividade, que ultrapassa os indivíduos considerados isoladamente – não há, portanto, uma
“ética individual”. A moral, por sua vez, fundamenta sua apreciação na razão e consciência
pessoais, ainda que considerando as repercussões e in�uências sociais desse ato.
Assim, a moral pode apresentar uma maior diversidade, uma vez que re�ete condutas, práticas e
desejos que variam para cada indivíduo, tempo e local da ação. Já a ética se ocupa da
sistematização da moralidade, objeto de seu estudo, apresentando, portanto, princípios e regras
relativamente mais amplos e duradouros.
Essas diferenças possibilitam, inclusive, a divergência entre enquadramentos éticos e morais,
haja vista que uma convenção moralmente aceita em uma sociedade especí�ca pode não
satisfazer uma re�exão ética, por não se adequar a princípios gerais do que seria bom, justo ou
correto.
Nesse mesmo sentido, é comum que grupos distintos de indivíduos, ainda que compondo uma
mesma coletividade – seja ela um país, uma cidade ou até mesmo uma classe de estudantes
universitários – tenham comportamentos orientados por padrões diferentes daquilo que
consideram moralmente aceitável, uma vez que os costumes, tabus e vontades incorporados
,vem o reconhecimento do
direito natural, que o considera sujeito de direitos;
2. o humanismo: o ser humano é colocado no centro para pensarmos a �nalidade dos nossos
atos e qualquer outro aspecto da vida social, considerando, portanto, a vida humana também um
direito inviolável;
3. o universalismo: o pertencimento ao gênero humano é considerado mais importante do que o
pertencimento a um grupo em particular, ou seja, a ideia de que todos os seres humanos são
portadores de direito;
4. o respeito à diversidade: pensar universalmente, em defesa da humanidade, signi�ca
reconhecer as diferenças, sejam elas religiosas, de pensamento ou políticas.
Se lermos os textos de �lósofos iluministas como Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e
Immanuel Kant (1724-1804) e, em seguida, os artigos da Carta de Direitos Americana (Bill of
Rights, 1789-1791) e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), compreendemos
que esses marcos jurídicos fundadores dos direitos humanos na modernidade estão
profundamente enraizados nos ideais iluministas.
É exatamente por esse motivo que esses textos e essas legislações não envelheceram! E mais
do que nunca é nossa tarefa, hoje, recuperá-los para poder retomar ideais que podem ter um
papel transformador, em particular para combater os obscurantismos presentes na
contemporaneidade.
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Declaração Universal dos Direitos Humanos
A evolução dos direitos humanos até os séculos XX e XXI não deixou de se espelhar nesses
ideais. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (Organização das Nações Unidas, 1948),
outro marco jurídico importante dos direitos humanos, é o maior exemplo de como esses ideais
não envelheceram e continuaram sendo de enorme importância para poder dar uma nova direção
para uma sociedade que, naquela época, estava saindo de duas grandes guerras mundiais.
Essas guerras são exemplos muito fortes de catástrofes humanas. Por esse motivo, nesse
momento, as sociedades europeias se colocaram a difícil, mas necessária, tarefa de lidar com os
crimes contra a humanidade que não poderiam se repetir, como aqueles perpetrados pelo
nazismo.
______
Exempli�cando
A Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU,
1948), após um preâmbulo muito importante por explicitar os princípios norteadores dos direitos
humanos, determina em seus primeiros artigos:
Artigo I
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados
de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade.
Artigo II
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1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política,
jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer
se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer
sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
Artigo III
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o trá�co de
escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.
Artigo VI
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como
pessoa perante a lei.
Artigo VII
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção
da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a
presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (ONU, 1948, p.
4-6)
______
Foi justamente nesse imediato Pós-Guerra, em 1945, que houve a operacionalização da punição
do crime contra a humanidade, a partir dos princípios do direito internacional. O Tribunal de
Nuremberg foi uma iniciativa que transformou os ideais de defesa dos direitos humanos em uma
prática judicial, com o importante papel de também produzir memória para evitar que momentos
tenebrosos da história – que viraram as costas para os direitos humanos – se repitam.
Os principais representantes do regime nazista foram julgados nesse Tribunal pelos crimes de
guerra, sobretudo pelo extermínio de mais de seis milhões de judeus, além de opositores ao
regime, hom*ossexuais, ciganos, dentre outros grupos sociais. Colocava-se, nessa ocasião, o
dever de reconhecer e punir as atrocidades que causam grande sofrimento e atingem a
integridade física e/ou mental de indivíduos ou grupos sociais.
______
Pesquise mais
Hanashiro (2001) oferece um histórico e um panorama completo do desenvolvimento do sistema
de proteção aos direitos humanos nas Américas, que encontrou sua condensação na Carta da
Organização dos Estados Americanos (OEA), na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem (ambas de 1951) e na Convenção Americana de Direitos (1978). Em 1969, esses direitos
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passaram a ser operacionalizados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, mais
tarde, em 1979, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Violação dos direitos humanos
Nessa ocasião foi a�rmado um princípio de justiça global, que colocava a primazia do direito
internacional em relação ao nacional como instrumento de defesa dos direitos humanos para
coibir práticas que são consideradas intoleráveis, porque atentam à humanidade. Na atualidade,
a Corte Penal Internacional ([s.d.]) é o principal órgão responsável por punir crimes contra a
humanidade e por denunciar práticas hediondas.
É variado o quadro de violação de direitos humanos de indivíduos ou grupos sociais por motivo
político, econômico, religioso, racial, compreendendo assassinato, escravidão, deportação,
tortura, prisão abusiva, abuso sexual, perseguição em massa, desaparecimento de pessoas,
apartheid, genocídio, crime de guerra, prostituição forçada, esterilização forçada, dentre outros.
______
Exempli�cando
Os casos de genocídio são os exemplos mais gritantes de crime contra a humanidade. Em geral,
esse crime é associado ao extermínio dos judeus durante o nazismo. No entanto, é importante
lembrarmos que esse fenômeno é muito mais amplo. Sobretudo, muito antes da barbárie do
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nazismo ocorrida no contexto europeu, a prática do extermínio em massa já tinha precedentes
com a atuação dos sistemas coloniais na América Latina, África e Ásia (BRUNETEAU, 2006).
Com relação à América Latina, o autor David Stannard (1993) chamou de “holocausto americano”
a dizimação da população indígena, na América do Sul e do Norte, pelas armas dos
colonizadores europeus e também pelas doenças biológicas que traziam. Muitos outros autores
utilizam-se das estimativas populacionais do período anterior à colonização (1500),
comparando-as com as primeiras décadas desse mesmo século, para iluminar o rápido e brutal
decréscimo da população indígena do continente, que nada mais é do que um verdadeiro
genocídio.
O historiador Enzo Traverzo, em seu livro La violenza nazista: uma genealogia (2002), mostrou
que a conquista do “espaço vital” baseado no critério racial – ocupação de novos territórios para
a “raça” “pura” alemã – já tinha sido amplamente utilizada pelos sistemas coloniais modernos
nas colônias e é um dos fatores que explica a genealogia do nazismo, ou seja, os processos que
estão em sua origem histórica no que se refere às práticas genocidas e violentas.
______
Essa forma violenta de tratar grupos sociais especí�cos da nossa população, antes os
“selvagens” e hoje os mais pobres e os negros, não pertence apenas ao passado. Por exemplo,
hoje a mídia tem um papel muito importante em difundir a ideia de que “bandido tem que
morrer”. Em nenhum
,momento se esclarece, no entanto, quem é esse bandido, qual é a sua
história de vida, de qual sistema de violência (do Estado e da sociedade) ele também foi vítima,
que tratamento ele recebe na prisão.
Da mesma forma, em nenhum momento se discute como sociedades que já foram marcadas
pela violência e caminham para resolver de forma humanizada o problema da criminalidade
atacam suas causas, ou seja, como lidam com as desigualdades sociais, o acesso ao trabalho
digno, à moradia e à educação, o respeito aos direitos humanos, en�m, o direito à vida.
Lamentavelmente nossa memória latino-americana é atravessada por crimes contra a
humanidade. Como não poderíamos citar o trá�co de escravos e a escravidão, que foram
perpetuados por séculos no Brasil para sustentar nossa economia agrário-exportadora?
O historiador Clóvis Moura (2014) mostra muito bem as barbáries perpetuadas contra os negros,
que eram justi�cadas pela ideia de que esses não eram “homens”, não pertenciam à
“humanidade”, portanto não podiam nem mesmo ser tratados como súditos, apenas como
animais. Segundo Abdias Nascimento (1978), o genocídio contra os negros é permanente e
ocorre de forma velada no Brasil. As estatísticas sobre os jovens negros que são assassinados e
encarcerados no Brasil comprovam que esse autor continua tendo toda a razão.
A segunda metade do século XX é igualmente repleta de crimes contra a humanidade no nosso
continente. Os regimes ditatoriais que se disseminaram em vários países, como Argentina, Chile,
Uruguai e Brasil, são exemplos de crimes contra a humanidade, pela prática da tortura de
dissidentes políticos, assassinatos, estupros de mulheres, prisões em massa, desaparecimento
de corpos, perseguições.
Essas práticas no Brasil produziram muitos mortos, desaparecidos, porém não receberam um
julgamento que ateste e reconheça essas atrocidades até hoje. Sabemos que, nesse período, o
Brasil também expulsou muitas pessoas que resistiam e lutavam contra essas práticas, em
defesa dos direitos humanos e da democracia, sobretudo da liberdade de expressão, valor que,
como já mencionado, havia sido reconhecido muitos séculos atrás.
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São décadas nas quais o Brasil produziu muitos refugiados, jovens, estudantes, professores,
intelectuais, artistas, escritores, músicos. A liberdade, a imaginação, a criação, a crítica, a
participação cidadã na política não eram tolerados pelo regime.
Comissão Nacional da Verdade
Uma crítica que é muito pertinente ao nosso país refere-se à incapacidade, ou à falta de vontade
política, de trabalhar com essa longa história de desrespeito aos direitos humanos. Essa crítica
não vale apenas para o nosso passado remoto – da sociedade colonial, que não foi devidamente
discutido e ensinado criticamente para a população –, mas também vale para o nosso passado
recente do regime ditatorial.
A iniciativa da Comissão Nacional da Verdade, que foi referendada pela Lei nº 12.528 (BRASIL,
2011), merece destaque como uma exceção a essa regra. A Comissão foi recentemente
implementada para agir nessa lacuna e representa uma conquista de pesquisadores,
professores, movimentos sociais e das pessoas – sobretudo de vítimas e/ou
familiares/conhecidos de mortos, perseguidos, torturados na ditadura – comprometidos com a
produção da memória por meio do exame e do esclarecimento das graves violações aos direitos
humanos cometidas no período da ditadura (1964-1988).
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Um relatório �nal foi produzido por essa Comissão, no qual é possível analisar os limites e os
desa�os dessa iniciativa, sobretudo o de comunicar os seus resultados para a população em
geral e poder efetivar políticas públicas para a conscientização dessa memória (PEREIRA, 2016).
Ao contrário, países como Uruguai, Chile e Argentina trabalharam de forma muito mais e�ciente
com essa memória sobre a ditadura para explicar para a sua população o que signi�cam os
crimes contra a humanidade cometidos durante esses regimes. Neste último país, por exemplo,
há uma iniciativa que se sobressai nesse sentido.
Você já ouviu falar das “Mães da Praça de Maio”? São várias mulheres que tiveram seus �lhos
desaparecidos durante a ditadura argentina e que marcham semanalmente em frente à Casa
Rosada (sede do governo federal Argentino, em Buenos Aires) com os lenços brancos em suas
cabeças – por representarem simbolicamente as fraldas de seus bebês – para protestar contra a
ditadura e reivindicar a memória dessa atrocidade que matou seus �lhos e muitos outros jovens,
para que isso não se repita mais.
______
Re�ita
Ao marcharem, as “madres” falam bem alto o nome de seus �lhos assassinados pelo regime, e
as pessoas respondem: “presente”! Trata-se de uma ação cidadã dessas mães, que hoje já são
idosas, entretanto não se cansam de marchar, na luta pela justiça e pela memória de seus �lhos
desaparecidos. Você já é pai ou mãe de um �lho ou deseja ser no futuro? Você pode entender a
dor dessas “madres” e a importância da sua ação cidadã?
Mães da Praça de Maio. Fonte: Minutouno.
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Re�ita
No Brasil, tem sido comum o questionamento de que a ditadura militar caracteriza um período
em que se cometeu crimes hediondos contra a humanidade, como a tortura, assassinatos,
desaparecimentos, perseguições, estupros de mulheres opositoras ao regime. O relatório da
Comissão da Verdade mostra de forma muito bem sistematizada como esses crimes foram
reais.
______
No Chile, a ditadura comandada pelo general Pinochet foi a mais mortífera da América do Sul. Na
capital Santiago, há um Museu dos Direitos Humanos, onde é possível encontrar uma
sistematização muito didática, acessível a toda a população, sobre as práticas do terror durante
esse período, com as memórias de suas vítimas. Lá, podemos encontrar milhares de fotos,
cartas a parentes, desenhos de crianças, que nos ensinam muito sobre o sofrimento humano e o
sacrifício de vidas atingido, sem escrúpulos, naquele período.
Esses períodos mais obscuros e mortíferos da humanidade explicitam, na verdade, a sistemática
aplicação de uma lógica punitiva em um contexto ditatorial. No entanto, se pararmos para re�etir,
percebemos que essas lógicas também podem estar presentes no funcionamento das
sociedades em um Estado democrático e, até mesmo, na nossa cotidianidade, perpassada por
instituições como a escola, os hospitais e as prisões.
Seria necessário um tratamento mais aprofundado para entendermos por que a população adere
irre�etidamente ao punitivismo, entendido como uma lógica de punição, ou seja, a ideia de que a
punição, o castigo, a pena é a única e mais e�caz solução. Sem considerar o papel da mídia de
construir essa visão única para olhar para o problema da violência – silenciando outras
violências em nível macro, como a do sistema econômico ou da ação do próprio Estado –, é
impossível entender essa questão.
Michel Foucault
http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/
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Michel Foucault (1926-1984) nos ajuda a re�etir sobre esse dilema antigo e atual ao explicar que
o punitivismo é também uma forma de governar do poder, que passa pela incorporação da lógica
de punição pelos sujeitos.
O autor é uma referência para reconhecermos o caráter brutal da repressão e do controle no
funcionamento das sociedades modernas que, paralelamente à a�rmação dos direitos humanos,
colocaram no centro de sua organização “a vontade de punir”, as técnicas de punição e vigilância
permanentes, legitimadas por saberes que evoluíram para um tipo especí�co de práticas
disciplinares, amplamente disseminadas e, mais do que tudo, internalizadas pelos próprios
sujeitos.
O modelo arquitetônico de prisão de Jeremy Benthan do Panopticon (pan signi�ca tudo e
optikós, visão) é utilizado por Foucault para explicar a especi�cidade do que chama “poder
disciplinar”, uma vez que retrata concretamente a operacionalização da lógica punitiva
internalizada pelos próprios indivíduos e pensada cienti�camente.
,Segundo Foucault,
“O Panóptico de Bentham é a �gura arquitetural dessa composição. O princípio é
conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; essa é vazada
de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é
dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm
duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá
para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado.Basta então colocar
um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado,
um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre,
recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas
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da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho,
perfeitamente individualizado e constantemente visível.” (FOUCAULT, 1997, p. 166)
O segredo da técnica de vigilância contínua é que o condenado não sabe se de fato está sendo
observado, já que existe apenas um vigia no centro da prisão para controlar todos os detentos.
Todavia, o simples fato de supostamente estar sob vigilância faz com que o detento internalize
essa norma e obedeça às regras de bom comportamento.
No contato com essa disciplina, reproduzida por instituições como as prisões, escolas, hospitais,
nascem os “corpos dóceis”, “obedientes” e também “produtivos”:
“uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação �ctícia. De modo que não é
necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento, o
louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o doente à observância
de receitas” (FOUCAULT, 1997, p. 167).
______
Assimile
A arquitetura do poder disciplinar pode ser entendida pela imagem a seguir do Panopticon,
analisado por Michel Foucault.
Panóptico de Bentham. Fonte: Revista Espacios.
______
A relação “poder-saber”, expressa em discursos cientí�cos e no senso comum sobre a punição,
também tem um papel fundamental para a construção da verdade sobre o crime e para a
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legitimação de sua punição pelas práticas disciplinares, que incluem a vigilância contínua.
O �lósofo nos explica que esse saber construído é também uma forma de controle político e
social que se transforma em práticas generalizadas, atingindo determinados grupos sociais, em
particular os classi�cados como “anormais”: “loucos”, detentos, hom*ossexuais, prostitutas,
dentre outros. Como exemplo podemos citar o discurso cientí�co da psiquiatria para classi�car
os “normais” e os “loucos”, estabelecendo práticas especí�cas, não apenas para separar esses
últimos da sociedade, mas também para puni-los quando infringem as regras de conduta nas
instituições psiquiátricas.
Lembremos que os hospitais psiquiátricos, até pouco tempo atrás, utilizavam-se de práticas
como a cadeira de choque, o açoite, as alas de isolamento total, entre outras. Essas práticas
eram consideradas pelo discurso psiquiátrico como a única forma de curar as pessoas com
problema psíquico.
A questão é que essas pessoas, ao contrário de serem curadas de forma humanizada e
integrada com os familiares e a sociedade, viviam e morriam nesses hospitais. Como estavam
isoladas, a sociedade simplesmente não via, ou não queria enxergar, o que ocorria dentro dessas
instituições e como o discurso cientí�co da psiquiatria não correspondia aos �ns de, de fato,
“curar” esses pacientes.
Campo do Saber
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O campo do saber está, portanto, intrinsecamente ligado ao exercício do poder por se basear em
discursos cientí�cos para legitimar as suas práticas. Lembremos que essa relação poder-saber
também expressa relações de desequilíbrios entre os sexos.
Baseado nos ensinamentos de Foucault, o estudo de Da Silva (1985) mostra como o saber da
legislação penal (que regulamenta a sexualidade da mulher), a doutrina penal (que garante a
aplicação dessas normas) e a jurisprudência presente em toda a dogmática penal conseguem
adaptar de�nições de normalidade da conduta da mulher estabelecidas pelas estruturas de
poder dominantes ao corpo da mulher.
Com base nessas de�nições de normalidade da conduta da mulher construídas pelo poder
patriarcal – que considera a mulher inferior e submissa ao homem – muitas sentenças
proferidas pelos tribunais penais absolvem os homens que cometeram crimes de violência e
abuso sexual contra as mulheres. Segundo a autora, o Direito Penal reproduz as relações
assimétricas entre os sexos na sociedade brasileira também com base em:
“ ‘elementos teóricos’ ou recursos teóricos que reforçam, no nível do conhecimento e
da racionalidade, as técnicas de dominação [da mulher]. É sob este prisma que se
analisaram o discurso do poder judiciário, a partir da lei, para provar que, pelo poder
de “normalização”, instalou-se no direito penal, um conjunto de práticas, em forma de
técnicas de controle físico-corporal, da sexualidade feminina.” (DA SILVA, 1985, p.
111)
De Carvalho (2010) explica que, desde as últimas décadas, o Brasil pode ser considerado, para
todos os efeitos, um país que segue a mesma tendência punitivista presente no cenário
internacional, em detrimento do direito à vida. O encarceramento em massa é prova disso. O
autor discute como, em um contexto de crise, incerteza, insegurança, a “cultura do medo”, do
“ódio”, da “tolerância zero”, en�m, as lógicas punitivistas, fazem parte do imaginário das pessoas
e, sobretudo, da forma de governar dos Estados.
A mídia é um vetor de enorme importância dessa “racionalidade”. Não há uma re�exão que evite
o despertar de um sentimento de insegurança, de impunidade, que acompanha, portanto, a ideia
da punição, da vingança e da privação de liberdade.
______
Exempli�cando
Repare quantas vezes você escuta nos jornais e nos programas televisivos notícias sobre crimes
e sobre a ação da polícia. Compare com o tempo dedicado a discutir projetos para construir uma
sociedade com trabalho digno para todos, com acesso universal à educação de qualidade, à
cultura, à moradia, ou mesmo para revitalizar os espaços públicos das cidades para que as
pessoas andem nas ruas e frequentem praças, parques, evitando, assim, a propagação da
violência.
______
O maior problema sobre essa questão, como ressaltam diversos estudiosos, é que o “clamor
punitivista” caminha ao lado da violação de garantias e direitos – sobretudo dos direitos
humanos, do direito à vida – e do abuso de poder. O que se está produzindo, no fundo, são
sociedades mais violentas.
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Autores como Loïc Wacquant mostram como os países que mais possuem encarcerados no
mundo, como os EUA, não são aqueles que têm menores índices de criminalidade. Conforme
explica o autor, o aprisionamento em massa re�ete o funcionamento da “tolerância zero” contra
os grupos mais vulneráveis da sociedade: os de baixa renda, os negros, os imigrantes, daí a sua
famosa expressão “prisões da miséria” e “criminalização da pobreza”.
______
Assimile
1. Nós sabemos que a principal vítima das lógicas punitivistas no Brasil é a população negra
(MOURA; RIBEIRO, 2014) e no contexto internacional são os imigrantes e refugiados.
Raça, cor ou etnia das pessoas privadas de liberdade e da população total. Fonte: BRASIL.
2. O estudo de Fernanda Garcia (2016) traz um panorama completo, teórico e empírico sobre
o funcionamento dos inúmeros centros de detenção de imigrantes na Europa, em particular
na Itália. Segundo a autora, as práticas de “vigilância e controle” e a violência a que são
submetidos os imigrantes e refugiados permitem comparar essas prisões com os “campos
de concentração” no regime nazista.
Conclusão
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A situação-problema coloca em discussão a questão dos refugiados. A proposta é analisar essa
questão a partir do contexto brasileiro. O Brasil já foi e ainda é um país receptor de refugiados.
,No passado, recebeu europeus que fugiam das duas grandes guerras e, nas últimas décadas,
refugiados de diferentes nacionalidades, sobretudo sírios, venezuelanos, haitianos, angolanos e
palestinos.
O refugiado é protegido por tratados internacionais como a Convenção de Genebra (1951), a
Declaração de Cartagena (1984) e os princípios dos direitos humanos e, no Brasil, pela Lei
Nacional de Refúgio nº 9474 (BRASIL, 1997) e pela Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Esses deslocamentos forçados espelham o desrespeito aos direitos humanos e situações de
desastre ambiental nos países de origem dessas populações, além de casos mais típicos de
refúgio, provocados por perseguição política, racial, religiosa, violência, guerra e outros casos de
ameaça à vida. Hoje, também se discute a necessidade de ampliação desse estatuto para
abranger uma concepção mais ampla de desrespeito aos direitos humanos e situações de
desastre ambiental.
Grande parte desses deslocamentos contemporâneos é provocada por con�itos e guerras. No
entanto, a atuação de governos que desrespeitam as liberdades políticas mais elementares
(como o direito de resistência à opressão), princípios que foram a�rmados há muito tempo, no
Iluminismo, coloca um alarme para as nossas sociedades e suas conquistas democráticas, que
carregam anos de lutas e muitos sacrifícios, até de mortes, torturas, perseguições, prisões, para
combater governos tiranos e genocidas – no passado remoto e no mais próximo, como
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demonstra o caso dos regimes totalitários na Europa e das ditaduras no Brasil e no restante da
América Latina.
Para entendermos essa questão de forma mais aprofundada, é válido retornar ao período em que
o Brasil foi um país produtor de refugiados (1964-1984). Muitos estudos acadêmicos
comprovam que o Brasil expulsou inúmeras pessoas que resistiam e lutavam contra o governo
militar, em defesa dos direitos humanos e da democracia, sobretudo da liberdade de expressão,
valor que, como já mencionado, foi reconhecido há muitos séculos atrás.
Esses refugiados eram sobretudo jovens, estudantes, professores, intelectuais, artistas,
escritores e músicos. A liberdade, a imaginação, a criação, a crítica e a participação cidadã na
política, quando vistos pelo regime como “ameaças”, não eram tolerados.
Apesar de o Brasil não oferecer, como outros países o �zeram, instrumentos para que a
população entenda mais concretamente essa fotogra�a do horror na nossa história – e a
necessidade de não deixarmos que ela se repita –, há muitos relatos, �lmes, livros e músicas que
podem nos ensinar essa questão.
Embora não possamos defender que as “luzes da razão” podem resolver todos os problemas da
humanidade, sobretudo da emancipação humana, é válido retomar os princípios que motivaram
o Iluminismo. Esses valores são fundamentais como parâmetros para pensarmos a vida coletiva
e continuam válidos e atuais para evitarmos que nossas sociedades caminhem em direção ao
obscurantismo da razão. A negação desses valores e a interdição remonta a séculos atrás.
O acolhimento, no Brasil, dos “novos” refugiados passa pelo reconhecimento da sua condição
humana e também da necessidade de proteção dos valores democráticos na nossa sociedade
para que nosso país não se transforme, novamente, em um país produtor de refugiados em
massa. Ou seja, a defesa de um refugiado de ser acolhido em nosso país está totalmente
conectada com a defesa de que os próprios brasileiros tenham seus direitos respeitados, não
precisando fugir para outros países, tornando-se eles próprios refugiados.
A nossa Constituição Federal (BRASIL, 1988) é guardiã desses valores bem como os tratados
internacionais mencionados na aula. Há, portanto, uma legitimidade jurídica para o pleito de
proteção para todos os cidadãos brasileiros e não nacionais que tenham ameaçada a sua
liberdade de expressão, de fé religiosa, de posicionamento político, de escolha de identidade
sexual, dentre outros casos.
Aula 3
Democracia e cidadania: quem tem o poder?
Introdução da aula
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Qual é o foco da aula?
Nesta aula, discutiremos os direitos fundamentais em sua relação com a democracia, a
cidadania e o reconhecimento das diferenças.
Objetivos gerais de aprendizagem
Ao longo desta aula, você irá:
identi�car a relação entre democracia, cidadania e direitos fundamentais.;
examinar os dados da estrutura social no século XXI;
debater o quadro das desigualdades sociais no Brasil.
Situação-problema
Você já parou para pensar em quais são os grupos sociais do Brasil que mais sofrem com as
barreiras no acesso à cidadania e quais são essas barreiras – visíveis, mas também muitas
vezes invisíveis – por eles enfrentadas para a atuação política, ou seja, para a representação e a
reivindicação de seus direitos?
Para re�etirmos sobre essas questões no contexto nacional, tentaremos entender alguns
problemas do funcionamento das sociedades atualmente, em particular o aumento das
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desigualdades e sua relação intrínseca com a culpabilização e a exclusão dos grupos sociais
marginalizados denominados pelas ciências sociais de “diferença”.
No mundo inteiro, mas no Brasil em particular, essa lógica tem crescido, apesar de também
existirem contratendências guiadas pela defesa dos direitos fundamentais e dos direitos
humanos e por políticas de inclusão e de reconhecimento das diferenças.
O continente europeu é hoje um dos principais destinos de imigrantes e refugiados expulsos de
seus países. Sabemos que, ali, os efeitos da crise mundial eclodida em 2007/2008 acirram
con�itos já existentes e criam novos. De fato, os imigrantes e refugiados passam a ocupar o
lugar da “diferença” nessas sociedades e, muitas vezes, são identi�cados como o “bode
expiatório” de todos os problemas existentes – desemprego, criminalidade, terrorismo,
di�culdade de acesso a serviços públicos, dentre outros.
Essa tendência está estreitamente relacionada com a reprodução e o reforço de desigualdades,
das quais esses grupos são as principais vítimas, como o acesso a um emprego mais valorizado
e protegido, à educação e a serviços de educação e saúde.
No Brasil, a análise das diferenças deve abranger as raízes históricas, que colocaram os negros,
indígenas e outras populações marginalizadas na posição da “diferença” e de mais atingidos
pelas desigualdades. Como sabemos, essa questão social se reproduziu nos períodos históricos
posteriores.
Por que será que as mulheres pertencentes a esses grupos sociais são as mais atingidas pelos
fatores de discriminação, de desigualdade e de exclusão da participação política? Na sua
opinião, como seria o Brasil hoje sem a luta por reconhecimento – no passado e no presente –
empreendida por esses grupos sociais? As desigualdades sociais estariam mais equilibradas
sem a reivindicação desses grupos? No que se refere à democracia, você acha que a luta por
reconhecimento interfere positiva ou negativamente na forma de funcionamento do nosso
regime democrático?
Nesta aula, tentaremos entender de que modo essas diferenças ainda atuam na
contemporaneidade, seja na forma de lógicas de exclusão e de incidência das desigualdades,
seja na forma de luta por reconhecimento, como força contrária à atuação dessas lógicas.
Por �m, é importante não nos esquecermos de que a questão da desigualdade e da diferença e
sua relação com a democracia está sendo transformada também pela presença, no Brasil e no
mundo, de imigrantes e refugiados de diversas nacionalidades. No Brasil, como ocorreu no
passado com os imigrantes europeus e de outras nacionalidades, essa imigração do século XXI
nos obriga a pensar na ampliação do sentido da cidadania.
Relação entre democracia, cidadania e direitos fundamentais
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Iniciaremos nosso percurso didático pelo tratamento da relação entre democracia, cidadania e
direitos fundamentais. Na contemporaneidade, essa relação está prevista no que se chamou de
quarta
,geração dos direitos fundamentais que, segundo o jurista Paulo Bonavides (2004), surgiu
no �nal do século XX, no bojo da globalização e das décadas neoliberais, após um “processo
cumulativo e qualitativo” de formação das primeiras gerações dos direitos fundamentais
(BONAVIDES, 2004, p. 563).
O autor nos oferece uma síntese sobre a história dos direitos fundamentais, lembrando-nos do
fator que os distingue: os direitos fundamentais são aqueles previstos na Constituição (BRASIL,
1988) (têm, portanto, garantia constitucional) e são essencialmente voltados a
“criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade
humana” (BONAVIDES, 2004, p. 560).
Como esclarece Bonavides (2004), a primeira geração dos direitos fundamentais surgiu durante
a Revolução Francesa (1789) para a�rmar os direitos individuais, sobretudo os direitos civis e
políticos. A segunda geração se manifestou particularmente nas Constituições do pós-Segunda
Guerra Mundial, inclusive na brasileira (de forma um pouco tardia), com o �m de exigir a
implementação pelo Estado de políticas concretas para se efetivar os direitos sociais, culturais,
econômicos e coletivos.
Dessa segunda geração deriva o dever, do Estado e da sociedade, de garantir o básico para se
prover uma vida digna a todos os cidadãos, ou seja, o direito do acesso universal à saúde, à
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educação, a um trabalho e moradia dignos, dentre outros.
Todavia, para além das necessidades básicas, percebeu-se também, no �nal do século XX, a
importância da terceira geração dos direitos fundamentais, que proclama garantias universais
para o gênero humano, como a paz entre os povos, a preservação do meio ambiente, a
comunicação livre e não submetida a monopólios e, por �m, a proteção de locais que, pela sua
importância cultural e artística, são patrimônio comum da humanidade.
Mas estejamos atentos. Bonavides (2004) também nos faz um alerta de que esse desenho
geracional dos direitos fundamentais, previstos na nossa Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) e
de enorme importância para a nossa sociedade, não é su�ciente para a efetivação desses
direitos na realidade. Essa discussão foi colocada particularmente na década de 1990,
justamente o período no qual os sintomas socioeconômicos malé�cos das políticas de abertura
dos países à globalização e de redução dos gastos públicos – a partir do princípio neoliberal do
Estado mínimo – passam a se manifestar mais explicitamente em âmbito global, com particular
intensidade nas sociedades dos países mais pobres, que são chamados, hoje, de Sul Global.
Nesse contexto, percebeu-se que a não efetivação dos direitos fundamentais guarda uma
estreita relação com a forma de exercício de poder na maioria dos países, ou seja, em âmbito
global, que nega a efetiva participação da maioria dos cidadãos nas decisões políticas que lhes
afetam diretamente. Diversos mecanismos servem a essa situação, desde a negação do acesso
à renda, trabalho, educação, saúde, transporte e moradia, até as tecnologias utilizadas para
manipular a informação.
É por esse motivo que nasce a quarta geração dos direitos fundamentais, centrada na “ação de
controle” do poder político ao clamar pela participação consciente e corretamente informada,
não apenas pelo mero exercício do direito de voto, mas também pela presença nos diferentes
espaços políticos onde são discutidas e decididas questões de interesse comum. O pluralismo
de opiniões, de crenças, de culturas, de etnias, de visões de mundo é um requisito para que esse
espaço democrático possa existir.
Segundo Bonavides (2004), essa quarta geração re�ete a necessidade da construção de uma
“globalização política” na qual os direitos fundamentais não estejam separados do modo de
funcionamento das democracias e sejam colocados como uma prioridade diante de todos os
outros fatores de funcionamento das sociedades, inclusive o econômico.
______
Exempli�cando
A seguinte trecho, do jurista Bonavides, coloca em evidência a relação entre direitos
fundamentais da quarta geração e a atuação política em nível global para garantia da
democracia:
“Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional.
Só assim aufere humanização e legitimidade um conceito que, doutro modo, qual
vem acontecendo de último, poderá aparelhar unicamente a servidão do porvir. A
globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos da
quarta geração, que, aliás, correspondem à derradeira fase da institucionalização do
Estado social. São direitos da quarta geração o direito à democracia, à informação e o
direito ao pluralismo.” (BONAVIDES, 2004, p. 571)
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______
Dessa forma, o autor destaca o fato de que a relação dos direitos fundamentais com o exercício
da cidadania – pensada de forma articulada globalmente, para além da esfera nacional – e com
a democracia é umbilical. Sem um regime político que permita a participação cidadã
democrática, não é possível se falar em garantia dos direitos fundamentais.
Constituição de 88. Fonte: Elaborador pelo autor.
A Constituição de 1988 se contrapõe frontalmente ao sistema político das duas décadas
anteriores à sua instituição, do regime militar, que interditou o exercício da cidadania, ou seja, a
participação no poder político pela população. Essa garantia da cidadania pela Constituição é
uma condição sine qua non dos direitos fundamentais e não podemos esquecer disso!
Isso não nos exime, no entanto, de fazer uma crítica a mudanças reais que devem ocorrer nas
sociedades para que os direitos fundamentais, a democracia e a cidadania não se tornem
apenas palavras vazias. Sem dúvida alguma, quanto mais os direitos fundamentais são
desrespeitados e/ou ignorados, mais haverá uma assimetria no funcionamento do poder político.
Essa perspectiva é extremamente importante para a compreensão dos problemas vividos pelas
sociedades na contemporaneidade.
______
Re�ita
Você já parou para pensar, por exemplo, na relação dos estremecimentos dos valores
democráticos – espelhados nos novos cenários políticos em ascensão no atual contexto de
crise mundial –, com o desrespeito dos direitos fundamentais?
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Distribuição de Renda
A questão da distribuição de renda está no coração dessa discussão. Nos últimos anos, os
dados do economista francês Thomas Piketty (2014) �zeram muito barulho por deixarem
evidente que a tendência à concentração de renda não é uma anomalia dos países do Sul
Global.
Os Estados Unidos, centro do sistema econômico mundial, seguem criando desigualdades e
pobreza. Nesse país, a renda recebida pelos 10% mais ricos, nos anos 1970, era cerca de 35% da
renda total. A partir de então, só foi aumentando e, hoje, estima-se que os 10% mais ricos
recebem 48% da renda total.
Trata-se, na verdade, de uma tendência global. O relatório do Comitê de Oxford de Combate à
Fome (OXFAM, 2018), divulgado no início de 2018, mostra que 1% das pessoas mais ricas do
mundo concentram 82% da riqueza gerada em 2017.
Esse estado de fato da divisão de renda no mundo torna muito atuais as análises de Charles
Wright Mills (1916-1962), que, nos anos 1950, escreveu um clássico da sociologia, A elite do
poder (MILLS, 1975), em que analisa a relação estreita entre economia e política para explicar a
mudança na estrutura de classes dos Estados Unidos e sua imbricação com a dominação de
uma elite econômica, política e militar nesse país.
Essa análise foi atualizada por Robert Frank (2007), ao analisar a evolução dessa estrutura social
no século XXI, apontando para uma ainda maior concentração de renda, de super-ricos que vivem
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com uma renda tão alta, muitas vezes equivalente ao Produto Interno Bruto de um país, ao passo
que a maioria da população sofre a pressão do empobrecimento, sobretudo após a eclosão da
crise mundial em 2007/2008.
Resta-nos entender como o Brasil se situa nessa questão. O que
,você responderia se lhe
perguntassem sobre a relação do funcionamento da democracia no Brasil com a efetividade dos
direitos fundamentais? Na sua opinião, podemos dizer que as gerações dos direitos
fundamentais são respeitadas no país?
No que se refere aos dados de concentração de renda, no Brasil a situação é ainda mais
alarmante. Desde os anos 1990, muitos autores das diferentes áreas do conhecimento vêm
demonstrando o impacto da globalização no aprofundamento das desigualdades e da exclusão
social – e também, portanto, a sua relação com o funcionamento frágil da nossa democracia e
de seus caminhos no futuro, caso não se tome consciência a respeito da questão da distribuição
de renda e riquezas.
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Pesquise mais
O Índice de Gini é um dos mais importantes dados para a mensuração das condições de renda
das populações, para entendê-lo melhor leia o texto "Índice de Gini" escrito pelo Me. Rodolfo
Alves Pena.
______
A reportagem de Rossi (2017), referindo-se a dados também fornecidos pela Oxfam, nos ajuda a
entrar mais a fundo nesse quadro de desigualdades no Brasil ao evidenciar que “seis brasileiros
concentram a mesma riqueza que a metade da população” ou seja, um pouco mais de cem
milhões de pessoas, e os “5% mais ricos [da população brasileira] detêm a mesma fatia de renda
que os demais 95%”! Segundo dados da Oxfam (2017), 165 milhões de brasileiros vivem com
uma renda per capita inferior a dois salários mínimos.
Um indicador importante para entendermos esse quadro de desigualdade de renda no Brasil diz
respeito à estrutura fundiária, que revela números igualmente brutais apresentados pelo Censo
Agropecuário (2006): 0,91% dos estabelecimentos rurais (latifúndios) concentram 52% da área
total das propriedades rurais. Os estabelecimentos com dez hectares de terra, representando
47% do total dos estabelecimentos do país, ocupam apenas 2,3% da área total (OXFAM, 2016).
Desigualdades sociais
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/indice-gini.htm
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Essa desigualdade de distribuição de terras mantém estreita relação com a situação precária da
vida urbana, sobretudo das grandes metrópoles. Raquel Rolnik (2016) recupera dados sobre a
proliferação de assentamentos e moradias informais nas periferias das grandes cidades do
mundo e do Brasil, explicando os mecanismos de produção de sem-tetos e da segregação
urbana pelo que chama de “guerra dos lugares” contemporânea. Estimou-se que, no Brasil
(2018), 6,9 milhões de famílias não têm uma casa para morar, ao passo que há 6 milhões de
imóveis desocupados (ODILLA; PASSARINHO; BARRUCHO, 2018).
É claro que esse quadro socioeconômico re�ete questões estruturais, sobretudo as antigas, as
novas e as diferentes faces das desigualdades, que foram agravadas de forma drástica pelo
contexto de crise econômica e política do Brasil, e pelo aumento do desemprego e do trabalho
terceirizado e/ou intermitente.
Autores como Florestan Fernandes (1973) analisaram as conexões dessa estrutura econômica
das periferias do capitalismo com a reprodução de um regime político autoritário. Seus estudos
mostram bem como o traço colonial de opressão política e exclusão da participação cidadã da
maioria da população permanece existindo mesmo depois de o Brasil se constituir como um
Estado–nação com sua “própria” burguesia nacional, �cando particularmente mais evidentes em
contextos de interrupção do regime democrático como no Estado Novo (1930-1945) e na
ditadura militar (1964-1985).
Todavia, muitos especialistas no tema das desigualdades entendem que esse quadro é de fato
difícil, mas não impossível de ser resolvido. Estudiosos preocupados com a justiça social não
deixam nenhuma dúvida em relação à necessidade de políticas para agir na urgência da fome e
do desemprego no Brasil, como o Programa Bolsa Família, que se torna ainda mais necessário
com o aumento do desemprego (em 2018, estimou-se em 14 milhões o número de
desempregados no Brasil, além de outras 15 milhões de pessoas vivendo do subemprego).
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Mas, para encarar de fato esse desnível de distribuição de renda, eles mostram também a
urgência da implementação de programas políticos de caráter mais estrutural, como uma
reforma no sistema de impostos – que no Brasil são pagos desigualmente pelos mais pobres –;
o aumento de salários para cobrir os custos de vida e oferecer maior poder de compra aos
trabalhadores; a reforma agrária; além de outras políticas que garantam os direitos fundamentais
de moradia, educação, saúde e preservação do meio ambiente.
As ciências sociais problematizam, na verdade, como essas desigualdades de distribuição de
renda e riqueza têm cor (não brancos) e sexo (feminino), combinando-se também com outros
fatores, como escolaridade, quali�cação, idade, nacionalidade, opção e identidade sexual. A
perspectiva da transubstancialidade (CRENSHAW, 2002), que articula as dimensões de classe,
gênero e etnia a �m de olhar para essas desigualdades, têm sido muito úteis para evidenciar
essas particularidades.
No Brasil, o grupo social dos negros é o mais atingido pelas desigualdades. No que se refere à
renda, essa desigualdade é bastante explícita: os brancos ganham, em média, o dobro dos
negros (OXFAM, 2017), ocupando postos de trabalho mais bem remunerados e de maior
prestígio e poder.
Essa desigualdade de renda se desdobra em desvantagens no acesso à educação, à saúde, ao
poder político, dentre outros fatores. Ela atinge igualmente as mulheres e outros grupos sociais
marginalizados, os indígenas, os migrantes internos e os imigrantes internacionais de per�l
socioeconômico vulnerável.
Muitos movimentos sociais, representantes desses grupos, dentre outras reivindicações, apoiam-
se na defesa de políticas a�rmativas a �m de contrastar os efeitos das desigualdades para
grupos sociais particulares. No Brasil, esses movimentos ganham destaque atualmente com a
luta antirracista e pelas cotas nas universidades públicas, bem como pelas manifestações de
mulheres para a defesa de seus direitos.
Souza, Ribeiro e Carvalhaes (2010) oferecem um estudo completo sobre as desigualdades de
acesso à educação para os negros no Brasil. Apesar de progressos conquistados pelo esforço
desses indivíduos e de suas organizações coletivas, os autores apontam “um abismo” que ainda
persiste no Brasil se considerado o acesso e a permanência, de brancos e negros, no ensino
superior.
A educação é considerada pelos autores como um fator determinante para agir nessa
desigualdade. De fato, embora o Brasil tenha sido um dos principais destinos do maior
movimento de migração forçada da história, o trá�co negreiro, sendo que mais da metade da sua
população se identi�ca como afrodescendente, apenas 25% desse contingente tem ensino
superior completo, segundo dados do Censo (2010).
A defesa das políticas a�rmativas, como o direito de cotas raciais nas universidades, responde à
necessidade de agir nas desigualdades reproduzidas nas sociedades. Como ressalta Silva
(2017),
“a ação a�rmativa não é concessão, ação a�rmativa é garantia de direitos” (SILVA,
2017, p. 15)
– sobretudo, lembremo-nos, de direitos fundamentais. Diversos especialistas que têm se
dedicado ao acompanhamento da implementação e desenvolvimento das políticas de cotas
raciais no ensino superior, em particular nas universidades públicas, ressaltam que essas
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instituições têm o dever de retribuir o investimento que recebem da sociedade com os impostos
pagos pela população.
A autora oferece um relato sobre os ganhos para a universidade pública de receber diferentes
culturas ao incluir as “diferenças”. Todavia, Silva (2017) também discute os diferentes tipos de
preconceitos e estereótipos que são mobilizados para barrar a entrada desses grupos nas
universidades.
Essa discriminação tem como alvo diferenças internas historicamente construídas – negros,
indígenas, migrantes internos – e também as “novas diferenças” que provêm dos movimentos
imigratórios
,para o Brasil na contemporaneidade. Para que essa população não seja excluída, é
igualmente urgente que políticas de inclusão sejam aplicadas, a exemplo da Cátedra Sérgio
Vieira de Mello (Brasil), que promove o direito de refugiados ingressarem ou continuarem seus
estudos no ensino superior.
Para combater esses estereótipos e preconceitos, são iluminadoras as palavras de Luiz Felipe de
Alencastro, historiador de nacionalidade brasileira, que foi um refugiado em Paris (França)
durante a ditadura militar no Brasil. Graças ao reconhecimento de sua cultura pela reputada
Universidade La Sorbonne de Paris, Alencastro pôde ensinar a história das Américas nesta
universidade.
Como explica o historiador, a sociedade brasileira como um todo ganha com as políticas
a�rmativas. Que sociedade, que democracia pode existir se grupos majoritários como os negros,
ou mesmo minoritários como os imigrantes e refugiados, forem excluídos do acesso aos direitos
fundamentais?
______
Assimile
O pronunciamento de Luiz Felipe de Alencastro no Supremo Tribunal Federal, em prol das
políticas de cotas, mostra que o funcionamento da democracia no Brasil passa pelo
reconhecimento desse direito fundamental para grupos mais atingidos pelas desigualdades:
[...] “agindo em sentido inverso, a redução das discriminações que ainda pesam sobre
os afro-brasileiros, hoje majoritários no seio da população, consolidará a democracia.
Portanto, não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória, destinada a quitar
dívidas da história e a garantir direitos usurpados de uma comunidade especí�ca,
como o caso em boa medida dos memoráveis julgamentos dessa corte [Supremo
Tribunal Federal] sobre a demarcação de terras indígenas. No presente julgamento
trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre a política a�rmativa no
aperfeiçoamento da democracia.” (ALENCASTRO, 2017, p. 112-113)
Teoria do reconhecimento
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No mesmo sentido, vem a opinião do �lósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. A sua teoria
do reconhecimento levanta a questão de que uma democracia não garante por si só a justiça
social e o respeito pelas diferenças culturais. O debate sobre o reconhecimento está presente de
forma não marginal na vasta produção intelectual do �lósofo.
Aqui, importa percebermos o que essa teoria ilumina, ou seja, que uma democracia efetiva não
negligencia o problema do que chama “minorias ‘inatas’”, tampouco aquele que surge “quando
uma cultura majoritária, no exercício do poder político, impinge às minorias a sua forma de vida,
negando assim aos cidadãos de origem cultural diversa uma efetiva igualdade de direitos”
(HABERMAS, 2004, p. 170).
A igualdade formal de direitos, prevista no regime republicano com base no princípio
universalista, não exclui, segundo o autor, a necessidade do reconhecimento das diferenças
pelas políticas de inclusão. Em suas palavras,
[...] “os sujeitos privados do direito não poderão sequer desfrutar das mesmas
liberdades subjetivas enquanto não chegarem ao exercício conjunto de sua
autonomia como cidadãos do Estado, a ter clareza quanto aos interesses e
parâmetros autorizados, e enquanto não chegarem a um acordo acerca das visões
relevantes segundo as quais se deve tratar como igual o que for igual e desigual o
que for desigual.Quando tomarmos a sério essa concatenação interna entre o Estado
de direito e a democracia, porém, �cará claro que o sistema dos direitos não fecha os
olhos nem para as condições de vida sociais desiguais, nem muito menos para as
diferenças culturais.” (HABERMAS, 2004, p. 242-243)
Habermas situa os direitos fundamentais na esfera do “reconhecimento intersubjetivo”, ou seja,
como “direitos que os cidadãos devem reconhecer mutuamente” (HABERMAS, 2004, p. 237). O
autor ressalta a importância da ação de movimentos sociais – por exemplo, grupos feministas,
minorias de imigrantes e refugiados, povos originários de regiões que foram submetidas ao
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sistema de colonização, pessoas com de�ciência, hom*ossexuais – para que possa ocorrer uma
“articulação e a�rmação de identidades coletivas” em prol da efetivação do Estado de direito por
uma “via democrática “ (HABERMAS, 2004, p. 237 e 245).
O “reconhecimento intersubjetivo” confere, assim, legitimidade à “luta social contra a opressão
de grupos que se viram privados de chances iguais de vida no meio social”, assumindo que
“as injustas condições sociais de vida na sociedade capitalista devem ser
compensadas com a distribuição mais justa dos bens coletivos” (HABERMAS, 2004,
p. 238).
Para �nalizarmos esta aula, será interessante revisitar um texto do autor escrito nos anos 1990,
no qual é levantada a questão da imigração e do refúgio na Europa. Habermas (1997) advertiu
que essa questão ocuparia um lugar central nessas sociedades no futuro. Sua análise também
se mostra acertada ao advertir que o aumento da presença de imigrantes e refugiados
acompanharia o que ele chamou de “chauvinismo do bem-estar”.
______
Exempli�cando
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, chauvinismo quer dizer: “1 patriotismo
fanático, agressivo 1.1 p. ext. entusiasmo excessivo pelo que é nacional, e menosprezo
sistemático pelo que é estrangeiro 1.2 p. ext. entusiasmo intransigente por uma causa, atitude ou
grupo”. A etimologia, origem dessa palavra, vem de “Chauvin, nome de um soldado francês que
exaltava ingenuamente as armas do primeiro Império, tipo popularizado e ridicularizado por seu
extremado patriotismo”.
______
Nesse momento histórico dos anos 1990, as sociedades europeias ainda não sofriam com os
perversos efeitos da crise mundial, eclodida em 2007/2008, pois, segundo o autor, ainda viviam
no estado de graça (em relação a outras partes do mundo) de poder desfrutar de um “bem-
estar”. O momento agora mudou.
Essa mesma Europa vive atualmente inúmeros con�itos sociais que são causados pelos efeitos
da crise mundial e acabam se condensado na tendência de exacerbação do nacionalismo como
uma forma de resolver os problemas que supostamente vêm “de fora”, do estrangeiro, e pela
presença do estrangeiro. São esses momentos de crise que, como esclarece o autor,
“trazem à tona a tensão latente entre cidadania e identidade nacional” (HABERMAS,
1997, p. 298).
Esse debate é de enorme relevância e devemos estar atentos a ele. Como Habermas (1997)
explica, o respeito pela democracia e pelos direitos fundamentais na atual con�guração das
sociedades com uma alta composição de imigrantes e refugiados só pode ocorrer no quadro de
uma “sociedade mundial” formada por “cidadãos do mundo”. Assim, nessa “sociedade mundial”
as diferenças são reconhecidas dentro de um quadro no qual “a cidadania em nível nacional e a
cidadania em nível mundial formam um continuum ” (HABERMAS, 1997, p. 305).
Esperamos que esta aula, ao discutir os direitos fundamentais em sua relação com a
democracia, a cidadania e o reconhecimento das diferenças, possa também iluminar esse
caminho.
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Conclusão
Faremos agora uma re�exão sobre as formas de luta contra as desigualdades e contra o estigma
da “diferença” dos grupos sociais que, em geral, mais encontraram – e ainda encontram –
barreiras no Brasil para o reconhecimento e para o pleno exercício da cidadania.
Como sabemos, os indígenas, nossos povos originários, desde o período colonial foram
considerados como a “diferença” em relação aos padrões de cultura, língua, poder político,
modelo econômico que foram impostos como hegemônicos pelo Estado Colonial. A imagem de
que esses povos são “selvagens”, “incivilizados”, “atrasados” e “ingênuos” para atuar
politicamente na representação de seus direitos – devendo, portanto, “assimilar” a cultura e os
modos de vida considerados “mais avançados” –, desde então, serviu (e ainda serve) de arma
ideológica para negar seus direitos e excluí-los da participação política.
A questão indígena está muito viva atualmente. São recorrentes as notícias de jornais
denunciando assassinatos
,de indígenas que lutam para a defesa de seus territórios diante do
avanço das fronteiras agrícolas. De fato, os nossos povos originários enfrentam as “lógicas de
expulsões” que os forçam a se deslocarem para as cidades, onde são tratados literalmente como
“estrangeiros” ou “cidadãos de segunda classe”. Essa questão é prova evidente de que toda a
riqueza de suas culturas, línguas e histórias nunca foi de fato reconhecida, nem pela sociedade,
nem pelo Estado brasileiro.
Mas a imagem de que os indígenas são “incapazes” para atuar na política não corresponde à
realidade. Sabemos que esses povos são organizados politicamente para a defesa de seus
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direitos e a preservação de suas terras e da biodiversidade nelas presente, muitas vezes até de
forma articulada internacionalmente. Os movimentos indígenas colocam em discussão como a
nossa identidade nacional não reconhece a sua diversidade e, por meio de diferentes formas de
luta concreta, tentam combater a injustiça social pela defesa do direito às suas terras e à
preservação de suas culturas.
Da mesma forma, a “diferença” construída em relação às culturas e civilizações dos povos
africanos, que foram trazidos para o Brasil de maneira forçada para trabalhar nas plantações na
condição de escravos – não de cidadãos –, ainda tem um papel determinante na legitimação das
desigualdades das quais os negros são vítimas. A historiogra�a mostra como a luta para
combater a escravidão foi transversal à presença dos africanos no Brasil e assumiu diferentes
formas ao longo da história, inclusive por meio da religião e da conhecida capoeira.
O Movimento Negro continuou desempenhando, após a abolição (1888) e no século XX, um
papel de enorme relevância para lutar contra a atuação do racismo, das desigualdades e das
injustiças que atingem essa população. Sem dúvida alguma, o século XXI no Brasil é marcado
pelas lutas desse movimento social, que tem um papel importantíssimo para dar visibilidade às
injustiças e desigualdades e para lutar por políticas de inclusão, como a das cotas raciais em
universidades e concursos públicos.
Também não podemos deixar de re�etir sobre a luta dos trabalhadores para melhorar as suas
condições de renda/salário e de trabalho, com importante papel para agir nas desigualdades
sociais no país. Os imigrantes europeus atuaram, também por meio dos sindicatos, para
organizar e empreender essas lutas no meio rural, mas sobretudo no urbano e na indústria.
A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) foi aprovada em 1943 também como resposta a
essas manifestações. Sabemos que as lutas do trabalho hoje não são tão ativas como no
passado, por diversos motivos. Mas é importante perceber que o trabalho se depara na
contemporaneidade com diversas pressões e desa�os, em particular devido a formas �exíveis de
contratação, informalidade, trabalho intermitente, desemprego, que acompanham novas
modalidades de organização e de reivindicação de direitos.
É evidente que essas lutas na esfera do trabalho continuam tendo uma função importantíssima
para agir nas desigualdades. Vale ressaltar que as mulheres também têm um papel ativo nessas
lutas, já que elas são as mais atingidas pelos trabalhos mais precarizados e desvalorizados.
Os movimentos feministas tiveram um papel histórico igualmente importante no mundo e
também no Brasil, para entendermos as formas de combater as desigualdades e a luta pelo
reconhecimento. O direito de voto foi uma das primeiras bandeiras reivindicadas por esse
movimento nos séculos XIX e XX. Hoje, a questão feminina se revela em diferentes
reivindicações, desde a luta pela igualdade salarial, maior participação nos postos com mais
prestígio e poder, até o direito ao aborto.
Lembremos que as “velhas diferenças” no Brasil se combinam com as “novas diferenças”, que
hoje são sobretudo representadas por uma “nova” base social da imigração, principalmente
proveniente de países do Sul Global, que pertencem a culturas e têm línguas e histórias quase
completamente desconhecidas no Brasil, além de diferentes fés religiosas, como é caso dos
haitianos, senegaleses, sírios, palestinos, dentre outras nacionalidades. A cidade de São Paulo é
um laboratório vivo das organizações desse grupo social em defesa de seus direitos. A
comunidade boliviana, por exemplo, tem se destacado em diferentes iniciativas nesse sentido.
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É por esse motivo que a questão indígena, bem como a “questão negra”, a “questão quilombola”,
a “questão feminina”, a “questão trabalhista” e a “questão migratória” estão intrinsecamente
ligadas. A sua base de fundo, na verdade, são as desigualdades de que esses grupos são alvo,
mas também a luta pelo reconhecimento de suas culturas, particularidades e direitos.
Também por esse motivo, as suas lutas não são apenas legítimas, mas também atuam como
fatores importantíssimos para a garantia do funcionamento do regime democrático no Brasil. O
país ainda tem muito o que avançar para a efetiva inclusão e o reconhecimento desses grupos
sociais.
Videoaula: cidadania e direitos humanos
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Videoaula da unidade "Cidadania e direitos humanos".
Referências
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Sociedade Brasileira e Cidadania
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São Paulo: Autonomia Literária/Elefante, 2016.
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Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986.
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Sociedade Brasileira e Cidadania
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,
Unidade 3
Dilemas éticos da sociedade brasileira
Aula 1
A corrupção tem solução?
Introdução da unidade
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Objetivos da Unidade
Ao longo desta Unidade, você irá:
discutir a história e o conceito de corrupção, bem como sua in�uência nas desigualdades
sociais;
examinar os fatos que caracterizam a pobreza no mundo atual;
debater sobre o racismo e como a sociedade brasileira o enxerga.
Introdução da Unidade
Seguiremos tratando de questões de enorme relevância para entendermos e enfrentarmos
problemas que são, ao mesmo tempo, atuais e históricos de nosso país. Abordaremos, mais
amplamente, três obstáculos centrais para a construção de uma sociedade democrática e mais
justa: a corrupção, a miséria e o racismo.
Se, por um lado, é verdade que esses problemas não são novos e se consolidaram como
elementos estruturais, constituintes da sociedade brasileira – como todos os dados mostram –,
por outro, também é correto a�rmar que em cenários de crise econômica e política as
contradições já existentes explicitam-se e acirram-se. Em um país com um quarto de sua
população vivendo abaixo da linha da miséria (são 55 milhões de brasileiros vivendo com renda
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
mensal menor do que R $400), um cenário de crise econômica e in�ação é mais do que um
incômodo: é um risco de vida.
Do mesmo modo, em cenários de crise e aumento do desemprego, populações historicamente
marginalizadas são aquelas que mais sofrem e se veem, muitas vezes, obrigadas a aceitar
condições de exploração desumanas para sobreviverem. No caso brasileiro, por exemplo, a
população afrodescendente é especialmente atingida por esse quadro, pois convive com taxas
de desemprego muito acima daquelas enfrentadas pela população branca.
Ao mesmo tempo, diante das a�ições sociais, são buscadas soluções imediatistas – para não
dizer “mágicas” – para problemas complexos. Sobretudo nesses momentos, a política, tida como
um espaço plural de debates e negociação de impasses, passa a ser entendida não como o
campo em que poderíamos resolver nossos obstáculos, mas como o próprio obstáculo.
Diante da crise, na mesma medida em que grande parte da sociedade passa a buscar
“salvadores” – líderes que seriam capazes de resolver sozinhos todos os nossos problemas –,
passa-se também a procurar os culpados de tal situação: não raramente trabalhadores
imigrantes são considerados injustamente como os causadores do desemprego ou estudantes
cotistas são acusados de “roubarem” as vagas das universidades. Assim, nesse cenário,
enquanto a crise econômica reforça o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres e, no
caso brasileiro, reitera as estatísticas que separam negros e brancos, a “política” se torna
sinônimo de “corrupção”, e a xenofobia cresce.
Não à toa, é comum na população uma sensação de desesperança, muitas vezes resumida nos
termos populares de “esse país não tem jeito”. Isso não signi�ca, porém, que nossa sociedade
seja marcada apenas pela desesperança ou pela inércia diante dos acontecimentos: a corrupção,
por exemplo, é um tema debatido por todos – independentemente de seu posicionamento ou
visão de mundo – e em todos os ambientes.
Mesmo entre desconhecidos, em um caixa de supermercado, o assunto aparece com frequência,
em conversas que podem durar apenas alguns segundos ou gerar longas e acaloradas
discussões. Podemos dizer, de outro modo, que a sociedade brasileira também oferece suas
respostas para seus dilemas, denunciando injustiças e discutindo soluções. Da mesma forma,
podemos a�rmar que predomina na população um desejo de oferecer propostas que levariam a
sociedade para uma outra direção.
A constatação do problema ou o simples desejo de mudança, porém, não são su�cientes para
que apontemos soluções reais e sustentáveis para o nosso futuro. É preciso partir de um
diagnóstico preciso, que vai além do senso comum e das respostas prontas como “só no Brasil”.
Se nossos problemas têm uma origem histórica – e eles têm –, isso signi�ca que eles também
são possíveis de serem solucionados. Em outros termos, se os impasses que enfrentamos se
originam na ação humana, é também a ação humana o caminho para a sua resolução. O
conhecimento de experiências bem-sucedidas de transformação social, assim como dos
princípios da ética, da política e da cidadania, deve, portanto, ocorrer lado a lado com a ciência
aprofundada de como se estruturam nossos problemas.
Independentemente de sua opinião prévia, ao discutir, por exemplo, programas sociais de renda
mínima ou cotas étnicas, você saberia dizer quais têm sido os efeitos reais – os dados – dessas
políticas no Brasil ou no mundo? Independentemente de sua posição política ou partidária,
saberia apontar dados sobre a corrupção no país, assim como os poderes responsáveis por seu
combate?
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
A luta contra a corrupção, o racismo e a miséria são questões urgentes da população brasileira –
e mundial –, que invadem a sala de aula, porque certamente estão determinando a sociedade ao
seu redor. O desa�o que cabe em um percurso de formação universitária é exatamente o de
colocar essas questões em um plano objetivo, com o devido distanciamento, para podermos
enxergar com mais nitidez quais elementos são de fato importantes para proporcionar os
parâmetros cientí�cos de entendimento da nossa própria realidade. Só assim poderemos pensar
com mais clareza nos caminhos que podem ser alternativos a esse desenho de uma sociedade
em crise.
A unidade está dividida em três aulas:
aula um: a corrupção tem solução?. Nesta aula, veremos que a corrupção não é um
problema exclusivamente brasileiro e não se restringe aos fatos da atualidade, mas, é claro,
há períodos e lugares em que a corrupção está mais presente.
aula dois: porque a miséria persiste em nosso país?. Nesta aula, buscaremos entender as
dinâmicas mais características da pobreza no mundo atual, sobretudo após a eclosão da
crise mundial (2007-2008) e sua manifestação com mais força no Brasil, a partir de 2014.
aula três: como combater nosso racismo?. Nesta aula, faremos um percurso didático a �m
de ajudá-lo a re�etir sobre as raízes históricas profundas do racismo, suas continuidades
no presente, mas também suas descontinuidades, que nos ajudam a entender o racismo
nos tempos atuais e as diferentes formas de combatê-lo, empreendidas por movimentos
sociais e por políticas públicas.
Introdução da aula
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Qual é o foco da aula?
Nesta aula, você verá que é possível identi�car as causas que levam determinado país, em
determinado momento da sua história, a ser marcado por casos de corrupção.
Objetivos gerais de aprendizagem
Ao longo desta aula, você irá:
de�nir o campo de estudos do tema envolvendo os atos de corrupção;
descrever a relação entre corrupção e ética;
debater sobre as desigualdades sociais no Brasil.
Situação-problema
Convidamos você a re�etir sobre um dos temas mais discutidos nos últimos anos no Brasil: a
corrupção. Conforme destacou o estudo de Cavalcanti (1991), escrito no início da década de
1990, quando o tema da corrupção viria a
,por
cada um deles diferem entre si. Quando tratamos da ética, entretanto, isso não acontece, já que
as concepções morais serão interpretadas para que se identi�que padrões éticos aplicáveis a
todos.
A problematização de aspectos da vida social que, por vezes, são equivocadamente equiparados
à ética não acontece apenas com a moral, já que frequentemente a religião é aplicada em
situações que exigiriam uma análise ética.
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
De imediato, podemos identi�car a origem de tais confusões no fato de que tanto a ética quanto
a religião exercem a função de prescrever regras de conduta e postura apropriadas aos
indivíduos. Adicionalmente, observa-se nas esferas ética e religiosa a existência de conceitos
opostos utilizados como referência à ação humana: bem e mal, certo e errado, por exemplo, são
parâmetros utilizados nos dois domínios aqui apreciados.
Apesar de tais aproximações, a ética e a religião apresentam divergências que justi�cam sua
distinção em campos do saber autônomos. Primeiramente, como vimos, o pensar ético é
eminentemente racional, determinado por processos lógicos inteligíveis, enquanto a
compreensão religiosa, em seus mais diversos credos, apresenta forte componente dogmático,
valendo-se de liturgias, mandamentos e sacralizações que transcendem os limites e temas
puramente racionais.
Ainda, a fundamentação ética, com base nessa racionalidade compartilhada por todos os seres
humanos, busca regramentos aplicáveis a toda a coletividade, em um processo que difere da
pluralidade religiosa que podemos constatar na sociedade.
______
Exempli�cando
Ética e religião
Leia o trecho a seguir e repare como o argumento de Dalai Lama, líder religioso do budismo
tibetano, aproxima-se do que estudamos nesta aula:
“É por isso que digo que, no século XXI, precisamos de uma nova ética que vá mais
além de todas as religiões. Re�ro-me a uma ética secular que seja útil e prática para
mais de mil milhões de ateus e um número cada vez maior de agnósticos. A nossa
espiritualidade humana básica é mais fundamental do que a religião [...]. Estou
convencido de que as pessoas podem viver sem religião, mas não podem viver sem
valores internos, sem ética.
A diferença entre a ética e a religião é semelhante à diferença entre a água e o chá. A
ética e os valores internos, baseados num contexto religioso, são mais como chá. O
chá que bebemos consiste em grande parte em água, mas também contém outros
ingredientes, tais como folhas de chá, especiarias, talvez um pouco de açúcar e, pelo
menos no Tibete, até mesmo uma pitada de sal, e isso torna-o mais saboroso e
nutritivo e é algo que queremos tomar todos os dias.
Mas independentemente de como o chá é preparado: O seu ingrediente principal é
sempre a água. Podemos viver sem chá, mas não sem água. De igual modo,
nascemos sem religião, mas não sem a necessidade básica de compaixão e também
não sem água. [...] Independentemente de pertencermos ou não a uma religião, todos
nós temos uma ética elementar e humana em nós. Devemos cuidar e valorizar este
fundamento ético comum. É a ética e não a religião que está enraizada na natureza
humana.” (ALT; LAMA, 2017, [s.p.], grifo nosso)
______
Nada impede, obviamente, que haja componentes éticos inseridos nos preceitos de uma religião.
Entretanto, é de se esperar que outros mandamentos religiosos sejam diferentes dos
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
procedimentos racionais defendidos pela ética. Em sentido inverso, constatamos que a ética não
se vincula aos preceitos desse ou daquele credo religioso, sendo plenamente viável que um
indivíduo ou uma sociedade desprovida de con�ssões religiosas se utilize dos campos do saber
ético, uma vez que os dilemas que emergem em nossos cotidianos não são exclusivos de uma
religiosidade especí�ca.
______
Exempli�cando
Ética e religião II
Agora, leia o excerto redigido pelo papa Francisco e perceba como a argumentação desenvolvida
pelo chefe da Igreja Católica se vincula a alguns pontos elencados nesta aula – adicionalmente,
repare como há uma convergência lógica com a redação de Dalai Lama, trazida no segmento
Exempli�cando anterior:
“Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não se
reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a verdade, a
bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a sua fonte em
Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade
humana, na construção duma convivência pací�ca entre os povos e na guarda da
criação. Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos, como o ‘Átrio dos
Gentios’, onde ‘crentes e não-crentes podem dialogar sobre os temas fundamentais
da ética, da arte e da ciência, e sobre a busca da transcendência’. Também este é um
caminho de paz para o nosso mundo ferido.” (FRANCISCO, 2013, [s.p.], grifo nosso)
Dilemas morais
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Quando nos deparamos com uma situação em que nenhuma possibilidade de ação está livre de
efeitos morais negativos, não existindo propriamente uma solução óbvia e inquestionável a ser
tomada, ou quando a resposta preconizada pela lei, pela tradição ou por qualquer outra fonte de
orientação de nosso comportamento parece se chocar com alguma convicção racional relevante
para nosso juízo, encontramo-nos diante de um dilema moral.
Os dilemas morais evidenciam a complexidade no exercício de nossa liberdade de escolha, já
que a existência de consequências negativas decorrentes de nossas decisões, ou a apreciação
dos valores a serem preferidos em um caso concreto, demandam o estabelecimento de certos
critérios racionais que podem não ser tão evidentes, como veremos nos exemplos a seguir.
Imagine, caro estudante, um médico legista que tenha acesso aos corpos de vítimas de
acidentes fatais; preocupado com a baixa disponibilidade de órgãos para doação, o médico
resolve, por conta própria e sem qualquer autorização formal, extrair dos �nados os órgãos que
permanecem funcionais, destinando-os à doação. A atitude do médico pode ser considerada
correta? Se você acredita que sim, provavelmente fundamentou sua decisão no fato de que tal
conduta apresenta efeitos positivos, na medida em que novas vidas poderão ser salvas a partir
da doação.
Essa justi�cativa se aproxima do raciocínio consequencialista, que busca nos resultados �nais
de um ato sua validação. Esse critério de análise é representativo da �loso�a utilitarista, que
defende a maximização da utilidade, ou da capacidade de produzir bem-estar e felicidade
coletivos, algo que pode ser inclusive matematicamente quanti�cado pelo número de pessoas,
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Sociedade Brasileira e Cidadania
intensidade ou duração envolvidos no benefício em questão, conforme argumentava Jeremy
Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).
Se, em sentido oposto, você rejeita a conduta do médico, deve ser porque considera o ato de
retirar os órgãos sem qualquer autorização prévia do falecido ou de seus familiares como sendo
uma atitude por si só incorreta. Trata-se, nesse caso, de uma abordagem deontológica, que
categoriza a ação humana a partir de percepções principiológicas dos deveres e direitos
existentes, relativizando suas consequências, à luz do que defendia Immanuel Kant (1724-1804).
Considere-se, agora, de férias em um país estrangeiro; você repara que nesse Estado é comum
que crianças comecem a trabalhar desde idades muito precoces. Ao classi�car tal fato como
algo incorreto, você provavelmente acredita que existem padrões mínimos de respeito à infância
que devem ser observados no Brasil, no país onde você se encontra e em qualquer outro lugar do
mundo, sob uma perspectiva universalista. Se, no entanto, você admite que existem
particularidades culturais desse povo que justi�quem tal situação, é o enfoque relativista que se
sobrepõe em seu raciocínio.
Repare que os impasses citados não pretendem analisar todos os tipos de dilemas morais
presentes em nossas vidas, tampouco esgotar as correntes
,explodir no Brasil com o processo de impeachment do
presidente Fernando Collor de Mello,
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Sociedade Brasileira e Cidadania
“Os brasileiros estão profundamente convencidos de que aqui vivem os políticos mais
corruptos do mundo – ou pelo menos os mais impunes –, convicção essa largamente
partilhada por inúmeros outros povos em relação a seus próprios países. Nada
parece capaz de abalar essa estranha convicção.” (CAVALCANTI, 1991, p. 18)
De fato, no Brasil, após a ditadura (1964-1985) – período em que a discussão pública da
corrupção foi interditada, pois era entendida pelo governo militar como um tipo de contestação e
ameaça à ordem –, o tema da corrupção ocupou um lugar central, primeiramente com o referido
processo de impeachment, depois com as acusações em relação ao governo Fernando Henrique
Cardoso – e seu suposto favorecimento pelo chamado “engavetador geral da República” –, em
seguida com as denúncias em relação ao Mensalão, um pretenso esquema de compra de apoio
no Congresso.
Mais tarde, sobretudo após 2014, novamente a corrupção reaparece na mídia como uma das
noções mais pronunciadas para explicar o contexto de crise no Brasil, tanto na sua dimensão
política, quanto econômica. Essa noção ganhou uma atenção crescente e passou a ser
considerada tão evidente a ponto de dispensar qualquer tipo de demonstração.
De imediato, isso nos provoca a buscar, antes de tudo, o sentido dessa palavra. Segundo o
Dicionário Houaiss da língua portuguesa, corrupção vem do latim e é sinônimo de declínio,
indecência e suborno. No português, assume o signi�cado de
[...] “depravação de hábitos, costumes, devassidão; ato ou efeito de subornar uma ou
mais pessoas em causa própria ou alheia com oferecimento de dinheiro ou suborno;
uso de meios ilegais para apropriar-se de informações privilegiadas, em benefício
próprio.” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 557)
Essa conotação invoca a dimensão essencialmente ética do comportamento e das atitudes e
balizou, de certa forma, a maior parte do debate sobre esse tema no Brasil. É como se toda a
forma de discutir o tema destacasse como o Brasil é corrupto, não atentando à pergunta de
como se tornou corrupto.
Para além da questão ética, é importante investigar as causas menos visíveis da corrupção e a
forma como a discussão do tema é feita no Brasil. Não poderíamos deixar de lembrá-lo de que
esse fenômeno vai muito além do contexto nacional, assumindo, na verdade, uma dimensão
global. A questão central é entendermos por que esse fenômeno está mais presente em algumas
sociedades do que em outras e qual é a relação disso com o funcionamento da democracia e,
sobretudo, com o grau de concentração do poder político e econômico.
Uma di�culdade adicional de se discutir esse tema na atualidade diz respeito ao fato de que as
políticas de privatização dos ativos, dos bens e dos serviços públicos, aplicadas de forma brutal
nas décadas neoliberais, tornam cada vez mais difícil a identi�cação das fronteiras entre o
público e o privado, trazendo em questão novas formas de corrupção (JOHNSTON, 2001).
Para pensarmos nessas fronteiras entre o público e o privado, vale resgatar aqui o caso
envolvendo Nelson Rockfeller (1908-1979), membro de uma das famílias mais ricas e poderosas
da história dos Estados Unidos. Segundo o jornalista e historiador Gilberto Maringoni de Oliveira
(2010, [s.p.]),
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
“Nelson Rockfeller [...], quando resolveu disputar as eleições para governador de Nova
York, em 1958, falou de seus planos à mãe, Abby Aldrich Rockefeller. Na lata, ela lhe
perguntou: “Meu �lho, isso não é coisa para nossos empregados?” Os patrões
deixaram o serviço sujo para os serviçais. Estes cumpriram o papel com entusiasmo.”
Quando voltamos o olhar para o Brasil, observamos que há uma relação complexa e promíscua
entre o Estado e o setor privado, entre servidores ou órgãos de Estado com grande poder para
alterar normas e procedimentos, tais como:
“reservas de mercado, meios �nanceiros e regulatórios de criar oligopólios
[concentração de poder e controle de serviços nas mãos de poucas empresas],
proteções exageradas contra a concorrência externa, multiplicidade confusa de
licenças para produzir e comerciar e controles de preços” (FREIRE, 2017, [s.p.]).
Agora, re�ita sobre a seguinte questão: na sua opinião, a forma de se discutir a corrupção no
Brasil traz ao conhecimento da população brasileira os problemas mais estruturais –
econômicos e políticos – implicados e o modo mais adequado de combatê-los? Ou o debate, em
geral, se dá em torno apenas do comportamento e da ética individual?
Corrupção
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Corrupção: ao falar sobre o tema, quase sempre lembramos imediatamente da palavra “política”,
certo? Ainda assim, os atos de corrupção não estão circunscritos apenas àqueles que têm
cargos públicos. Como poderíamos, então, rede�nir essa noção para pensarmos o tema desta
aula?
A noção mais comumente pensada para a corrupção remete a um comportamento individual de
desrespeito a normas éticas, morais e jurídicas para tirar benefício próprio, a �m de bene�ciar
alguém ou um grupo. Nesse sentido, a corrupção pode estar presente em todos os âmbitos da
vida de uma sociedade, desde as dinâmicas familiares até o funcionamento de uma empresa
privada/pública ou do Estado, podendo ser investigada a partir de diferentes ângulos – a cultura
e os valores de uma sociedade, a opinião pública, os costumes, entre outros.
Todavia, há uma outra perspectiva para tratarmos da corrupção, que busca iluminar a disputa
pelo poder econômico e político em uma dimensão mais sistêmica e estrutural, para além da
relação entre determinados indivíduos, que também envolve o desrespeito a normas no âmbito
de funcionamento de instituições como o Estado, o mercado, as empresas, as organizações não
governamentais (ONGs), as igrejas, a mídia, dentre outras entidades.
A sociologia parte dessa última perspectiva e tem a vantagem de afastar um tratamento
“moralista”, que foca o comportamento de um indivíduo determinado, ou “naturalizado”, que
considera a corrupção um fenômeno natural do ser humano e das sociedades. Ao contrário,
como explica José Arthur Rios, nas ciências sociais preza-se pela contextualização e
desvendamento do
[...] “aspecto público, a utilização direta ou indireta do poder público e administrativo
fora de seu campo legítimo, a �m de que o detentor do cargo ou do poder busque
auferir vantagem em proveito próprio, ou para distribuí-las entre amigos, servidores,
parentes, confrades, correligionários, sócios ou partidários. (RIOS, 1987, p. 86)”
Há um vasto campo de estudos sobre a corrupção, hoje, que destaca como nessa trama de
relações está envolvido principalmente o papel dos Estados em conjunto com os grandes grupos
econômicos e corporações transnacionais, que têm um enorme poder político (JAIN, 2001).
______
Assimile
Veja como a ciência social de�ne a corrupção:
“Embora o conceito de corrupção tenha sido historicamente empregado com vistas a
caracterizar comportamentos moralmente inadequados, a ciência social moderna
abandonou esse tipo de de�nição. Em vez disso, buscou descrever o conceito em
termos do não seguimento de leis e, mais recentemente, de açõções que levem à
sobreposiçãção entre as esferas pú blica e privada — mais especi�camente, de
açõções que impliquem algum tipo de ganho privado somado a dano ao bem pú
blico.” (GERALDINI, 2018, p. 26)
Corrupção e Ética
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Partiremos, portanto, da relação entre corrupção e ética, que, por sua vez, também nos obriga a
pensar na relação entre o público e o privado. Como vimos em outro momento, as esferas do
público e do privado, além de terem um critério objetivo de de�nição em leis e em princípios da
administração pública, também abrangem a noção de interesse público (bem comum) e
interesse privado (particular).
No Ocidente, a distinção entre público e privado está prevista em normas e princípios jurídicos,
porém, se na teoria
,pode parecer mais simples separar essas dimensões, na prática elas estão
imbricadas. Ainda assim, essa distinção que se aplica às leis e normas não deixa de ter
importância, pois permite identi�car a ação corrompida dos agentes que exercem a função
pública.
______
Exempli�cando
Segundo Rios (1987), os exemplos de corrupção são incontáveis e envolvem mecanismos
diversos de práticas fraudulentas nos pleitos eleitorais, falsi�cação de toda sorte de documentos
(públicos e/ou privados), facilitações em meios públicos e contratos suspeitos e assim por
diante. Sem contar os casos em que existe conluio entre instituições e/ou representantes
públicos e a criminalidade.
______
Ao buscarmos o entendimento da relação implícita do público e do privado na corrupção,
deparamo-nos também com um problema colocado pelo atual momento histórico, marcado pelo
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Sociedade Brasileira e Cidadania
debate em torno das atribuições do Estado.
Após décadas de hegemonia de uma perspectiva político-econômica que a�rmava a importância
de uma série de papéis do Estado nas sociedades capitalistas – responsável pela saúde,
educação e previdência, assim como de estatais em áreas consideradas essenciais –, outra
abordagem sobre essa situação passou a crescer e se consolidou a partir dos anos 1970. Com o
crescimento das propostas in�uenciadas pelo neoliberalismo, segundo Johnston (2001),
[...] “em muitas sociedades estamos vendo a evolução de um tipo de zona cinzenta,
que não é nem pública, nem privada, e onde as regras estão muito �uídas: como
exemplos, temos indústrias recém-desregulamentadas ou a privatização de serviços
públicos e planos de aposentadoria.” (JOHNSTON, 2001, p. 25)
Sem dúvida, é na esfera pública – instituições, empresas e funcionários regidos pelas normas do
direito público – que a corrupção ganha mais visibilidade e também é mais estudada. No
entanto, como esclarece o sociólogo José Artur Rios (1987), a esfera privada, sobretudo das
empresas, também é permeada por operações de
“favoritismo, apropriação indébita, concorrência desleal” (RIOS, 1987, p. 87),
além de outras formas de corrupção, como o suborno, o falseamento de dados para órgãos
reguladores e ambientais.
De fato, estudos e acontecimentos recentes mostram os mecanismos de corrupção no mundo
dos negócios privados. Nos últimos anos, por exemplo, o polêmico site Wikileaks se tornou
famoso ao expor documentos sigilosos que comprovam casos de corrupção e interesses
escusos não apenas de governos, mas também de grandes empresas.
A respeito da corrupção relativa a normas de preservação do meio ambiente – por empresas,
corporações e pelo Estado –, os prejuízos da corrupção são incalculáveis e podem até mesmo
ser irreparáveis. Na sociedade brasileira, é impossível discutir esse tema sem mencionarmos os
dois maiores crimes ambientais de nossa história – e dois dos maiores do mundo – ocorridos
nas cidades mineiras de Mariana (2015) e Brumadinho (2019).
Enquanto os acontecimentos de Brumadinho ainda se desenrolam, quase como uma repetição
inadvertida do primeiro desastre, podemos falar mais detalhadamente do crime ambiental que se
consolidou no Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, com o rompimento da barragem da
empresa Samarco Mineração S. A., que pertence à Vale e à BHP Billiton. Estima-se que 50
milhões de tipos de resíduos de metais pesados tenham sido lançados em diferentes rios, em
particular no Rio Doce.
A devastação causou danos sociais, econômicos, públicos e privados de enorme envergadura,
gerando mortes, doenças, contaminação, destruição de cidades e, particularmente, a
contaminação das águas dos rios, que caminhou por diferentes regiões até desembocar no mar.
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Rua de Bento Rodrigues. Fonte: wikimédia.
Foz do Rio Doce invadida pela lama. Fonte: wikimédia.
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Esse desastre poderia ter sido evitado, pois, segundo notícias de jornais e alegações de
movimentos ligados à causa, o rompimento da barragem parece ter sua raiz última em uma
fraude do licenciamento ambiental e em operações ilícitas das atividades dessa empresa (MAB,
2016; AUGUSTO, 2019). A empresa não teria cumprido seu dever de gestão do risco ambiental e
de fazer as reparações nas inúmeras rachaduras que estavam comprometendo a estrutura das
barragens.
Também teria havido negligência e ausência de �scalização efetiva por parte do Estado para que
as normas de segurança ambiental fossem cumpridas (GRAÇA, 2018). Muitas vezes, o alerta dos
�scais que trabalham comprometidos com seu dever público não é ouvido pelos responsáveis
políticos. Essa situação é muito mais abrangente no Brasil, não se resumindo apenas ao caso da
Samarco.
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Re�ita
Leia os trechos a seguir de reportagem realizada um ano após o crime ambiental em Mariana:
“Ao revisitar as ruínas do distrito de Bento Rodrigues, a agricultora Marinalva dos
Santos Salgado, conseguia explicar o que era cada cantinho do vilarejo, devastado
pela avalanche de rejeitos. Mesmo doído, o retorno ameniza a saudade e, porque as
lembranças revividas ali a aproximam de tudo que lhe faz falta: dos amigos que se
foram, dos vizinhos que não estão por perto, de sua casa e da carta que seu marido
havia escrito com declarações de amor e registros de 22 anos de casamento. Ele
morreu cinco anos antes da destruição de Bento, e Marinalva não teve tempo de
pegar nenhuma recordação de seu companheiro naquele 5 de novembro. “Casa eu
consigo de volta, mas isso não consigo mais. Ele escreveu na agenda muitas coisas
sobre a vida da gente, me agradecendo pelo que a gente viveu junto, os maus
momentos, os bons momentos, me declarando amor na hora da morte. Até a camisa
que ele morreu com ela, que nunca havia sido lavada, se foi com a lama. Isso daí era
o meu bem mais precioso”, revela. [...] Os números da tragédia são todos de grandes
proporções: 256 feridos, 300 desabrigados e 424 mil pessoas sem água. Exceto um
deles, o de condenados ou presos até agora, que é zero. Um ano depois, 22 pessoas
são denunciadas, sendo 21 por homicídio com dolo eventual, quando se assume o
risco de matar. As lembranças ainda são latentes, como se o dia 5 de novembro de
2015 realmente nunca tivesse acabado. Bento Rodrigues virou ruína e permanece
afundado em lama, o rio Doce parece marcado para sempre por uma mancha escura
de impurezas e tristeza.” (FERREIRA, [s.d., s.p.])
Diante do sofrimento vivido pelos moradores de Bento Rodrigues no relato apresentado e da
repetição do desastre no início de 2019, dessa vez em Brumadinho, podemos questionar: como
equacionar os interesses privados de uma grande empresa mineradora e o interesse público, o
bem comum? Qual deveria ser o papel do Estado diante desse con�ito?
Regulamentação ambiental no Brasil
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De fato, essa questão se repete no Brasil e no mundo. A questão da regulamentação, como
explica Altimiras-Martin et al. (2019), é fundamental para entendermos a visão predominante do
mundo corporativo sobre o respeito às normas ambientais. Como explicam os autores, a visão
tradicional que defende a necessidade de regulamentação ambiental das empresas é vista como
um custo, que implica burocracia e tempo, e reduz a competitividade, pois geralmente exige
investimentos.
No entanto, segundo os autores, essa visão não corresponde à realidade econômica das
empresas comprometidas com o meio ambiente. Como ressaltam, há um desconhecimento,
mesmo por parte das universidades e de engenheiros que trabalham com questões ambientais,
dos benefícios das tecnologias verdes e de “antipoluição”, bem como da gestão ambiental que
segue as normas e investe em inovação ambientalmente limpa.
No Brasil, a regulamentação ambiental parece estar muito longe de poder ser realizada de forma
plena, na mentalidade e na prática dos empresários e do Estado. Em vez de proteção ambiental,
predomina aqui a pressão que as corporações e megaempresas fazem no meio político para
quebrar todo tipo de barreira para explorar
,a natureza e/ou utilizar produtos químicos, como
agrotóxicos e venenos – chamados por seus apologistas de “defensores agrícolas”.
Além dessa pressão feita de fora para dentro, os empresários ligados ao agronegócio
constituem no Poder Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado Federal) a “Bancada do Boi”.
Ou seja, não só operam na lógica da pressão e do lobby, como também ocupam os cargos de
deputados e senadores, articulando eles próprios as políticas e as leis favoráveis aos próprios
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negócios, tais como �exibilização das leis de preservação ambiental e mudança do órgão
responsável pela demarcação de terras indígenas.
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� Pesquise mais
Além de grupos organizados ao redor da questão ambiental, pequenos agricultores, a população
indígena e tradicional, de ribeirinhos e quilombolas têm exercido um papel importante de defesa
do meio ambiente e de sua função social no Brasil (ZHOURI, 2008). Para saber mais sobre como
os quilombolas têm contribuído para a preservação de �orestas, acesse o site da Comissão Pró-
Índio de São Paulo (2011).
______
Não por acaso, a questão da demarcação das terras indígenas tem sido noticiada
recorrentemente nos jornais, com denúncias, por parte dessa população, do desrespeito às leis
de proteção de seus territórios e de suas culturas. Não obstante alguns avanços realizados em
matéria de proteção ambiental por parte do público e do privado, os limites e desa�os da
regulamentação, sobretudo da justiça ambiental, ainda são muitos (SHIKI; SHIKI; ROSADO, 2015;
ZHOURI, 2008). O risco de não conseguirmos avançar nesse sentido representa um dano para a
população brasileira como um todo.
Tanto em se tratando da corrupção que se dá a partir das grandes empresas, quanto daquela que
acontece pelas mãos dos agentes governamentais, a corrupção pode ser contabilizada em
termos econômicos, e, para isso, há diversas metodologias destinadas a calcular seus “prejuízos
econômicos” ao patrimônio público e à sociedade em geral (SPECK, 2000).
Esse cálculo pode assumir a forma monetária, ou seja, evidenciar a quantia em dinheiro
desviado, ou pode ser efetuado por uma equivalência desse montante em dimensões concretas
do funcionamento de uma sociedade, por exemplo: quantos leitos de hospitais, por ano, o desvio
de dinheiro público signi�ca para a sociedade brasileira? Quantos professores poderiam ser
contratados a mais? Quantas praças e ruas poderiam ser reformadas e melhor cuidadas? Quanto
mais poderia se investir em pesquisas para desenvolver tecnologias? En�m, esses parâmetros
deixam mais concretos os prejuízos de uma sociedade como um todo, mas em particular de sua
camada mais empobrecida.
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Exempli�cando
Impostômetro e sonegômetro
Duas medidas distintas que nos permitem quanti�car e re�etir sobre a corrupção e seus efeitos
no país são o impostômetro e o sonegômetro. Enquanto a primeira busca simular o cálculo, em
tempo real, dos impostos pagos pela população – o que permite pensarmos, portanto, no
dinheiro arrecadado pelo Estado e que deveria ser integralmente revertido em políticas para o
bem comum –, a segunda aponta para a quantidade de tributos sonegados e para os grandes
devedores de impostos, valor que, uma vez mais, poderia ser revertido em obras e ações que
favorecem o bem público. Conheça os sites das iniciativas, indicados a seguir:
FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES COMERCIAIS DO ESTADO DE SÃO PAULO; ASSOCIAÇÃO
COMERCIAL DE SÃO PAULO; INSTITUTO BRASILEIRO DE PLANEJAMENTO E TRIBUTAÇÃO.
Impostômetro.
SINDICATO NACIONAL DOS PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL (SINPROFAZ).
Sonegômetro.
https://cpisp.org.br/
https://cpisp.org.br/
https://impostometro.com.br/
http://www.quantocustaobrasil.com.br/
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Sociedade Brasileira e Cidadania
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Também Célia Regina Jardim Pinto (2011) tem como centro de seus estudos sobre a corrupção
a questão “do desrespeito generalizado da sociedade com o bem público”, sobretudo no que se
refere à “forma de governar” dos partidos políticos, mas também à forma de a sociedade
brasileira se relacionar com o público (PINTO, 2011, p. 8). Segundo a autora:
“Devemos ter presente que a corrupção é um fenômeno complexo, e para entendê-lo,
temos que considerar um conjunto variado de fatores: poder político e econômico
concentrados; profundas desigualdades sociais; pouca ou nenhuma noção de
interesse público; não reconhecimento do direito a ter direitos e a própria falta de
garantia de direitos; noção de direitos desiguais introjetada na cultura; elites
distanciadas do restante da população; falta de controle social, entre outros.” (PINTO,
2011, p. 8)
História da corrupção no Brasil
Entendemos, assim, que a corrupção não apenas agrava as desigualdades sociais –
econômicas, políticas, culturais – da sociedade, como também as reproduz. Por esse motivo, a
autora nos convida a re�etir sobre a ideia da
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Sociedade Brasileira e Cidadania
“legitimidade da hierarquia das desigualdades como princípio que baliza as relações
sociais no Brasil e o terreno que possibilita a emergência, reprodução e
aprofundamento da corrupção" (PINTO, 2011, p. 14).
Se considerarmos a corrupção a partir dessa perspectiva, veri�camos que os casos de
corrupção são transversais à história do Brasil. Como explica Pedro Cavalcanti (1991), a história
da corrupção no Brasil tem raízes antigas e diz respeito à formação social e econômica do país.
É claro que devemos considerar que cada período histórico tem uma de�nição especí�ca de
corrupção, prevista na legislação e/ou nos costumes éticos e morais de um determinado
contexto.
Você pode imaginar que a forma de discutir a corrupção em uma monarquia absolutista – na
qual o rei tem poderes absolutos e ele mesmo de�ne o que é ou não corrupção – é bem diferente
se comparada com a forma de discutir a corrupção em um Estado republicano e democrático,
balizado pelas leis da Constituição, no qual os políticos eleitos e os funcionários públicos têm o
dever de zelar pelo patrimônio comum e pela integridade na condução das instituições e
negócios públicos.
No entanto, a percepção que a sociedade brasileira tem da corrupção como um mal “de origem”,
assim como sua longa história em diferentes momentos políticos do país, leva à pergunta:
somos mais corruptos que outros povos? Para evitarmos naturalizar a corrupção – isto é,
considerá-la, além de natural, um problema insolúvel – é importante não cairmos nas armadilhas
que essa pergunta nos coloca.
Por esse motivo, consideramos mais relevante discutir as questões de fundo que explicam as
características históricas do desenvolvimento do nosso Estado e da nossa sociedade, com
destaque para as marcas coloniais e escravocratas, que de certa forma se prolongam no
presente, sobretudo se consideramos o papel subordinado do Brasil no mercado mundial e o
distanciamento do poder político com a real representação dos interesses da nossa população.
Os clássicos do pensamento social brasileiro nos fornecem diferentes perspectivas para
entendermos a formação do Estado no Brasil, portanto também da organização do poder político
marcado pela corrupção.
A perspectiva econômica, por exemplo, utilizada pelo historiador Caio Prado Jr. (1907-1990)
tentou explicar a formação do Estado brasileiro com base na noção de colônia de exploração –
em sua interpretação, responsável pelas nossas raízes do subdesenvolvimento, que se
prolongam até hoje – relativa à função que o Brasil assumiu no mercado mundial de 1500 a
1822.
Segundo o historiador, em sua clássica obra, o Brasil nasceu para fornecer matérias-primas e
trabalho barato – de nativos e negros escravizados – para a metrópole, Portugal, e para
potências coloniais como a Inglaterra. As riquezas naturais – principalmente metais – e aquela
produzida no país sempre foram “drenadas” para fora. Por esse motivo, historiadores e
sociólogos que reforçaram a interpretação de Prado Jr. destacaram fontes daqueles que
questionam o domínio da metrópole, como prova e denúncia da “rapina” como princípio de
funcionamento do
,poder político e da sociedade no Brasil.
Esse traço colonial e escravocrata modelou não apenas a economia, mas também a natureza do
poder político nas colônias da América Latina – ou seja, o Estado deveria estar ao seu serviço.
Sobretudo para a historiogra�a que enfatizou um sentido (exploratório) da colonização, a região
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foi considerada um território onde os colonizadores e os entes privados das metrópoles que
quisessem investir na aventura de colonizar tinham grandes possibilidades de conseguir lucro,
sem limites e de maneira rápida, em detrimento dos interesses mais gerais da população do
território e também da natureza.
Nesse sentido, a sociologia, a partir dos anos 1960 e 1970, tendeu a reiterar a interpretação de
Prado Jr. Como diversos estudos a�rmaram – tal como Fernandes (1973) –, trata-se de pensar
uma formação histórica que assume a concentração de poder político e econômico como seu
traço principal. Além disso, o próprio processo de modernização da sociedade brasileira também
fez com que os padrões corruptos que já existiam nas metrópoles fossem transportados e
potencializados nas colônias (CAVALCANTI, 1991).
Um exemplo de como o sistema escravocrata, que construiu os jogos de poder que fundaram o
país, é marcadamente corrupto é o trá�co negreiro. Nesse sentido, mais do que imoral – mesmo
nos debates da época, a elite escravocrata o admitia como um “mal necessário” –, se
consideramos a corrupção a partir da perspectiva da infração de leis, o trá�co negreiro era uma
prática ilegal e exercida impunemente pela elite do país durante décadas após a sua
independência:
“Nos primeiros dias da independência, a corrupção brasileira colocou-se, brutalmente,
a serviço do trá�co de escravos. Foi esse, sem sombra de dúvida, o pior episódio, o
mais abrangente, dramático e vergonhoso da longa história da corrupção no país. Por
uma série de tratados que a Inglaterra já começara a impor desde 1810, o trá�co
negreiro saía lentamente da legalidade em que prosperara tranquilamente durante
dois séculos e meio para uma espécie de ilegalidade teórica, só para “inglês ver”.”
(CAVALCANTI, 1991, p. 33-34)
Foi a partir dessa prática ilegal – tanto para leis e tratados internacionais, quanto para leis
nacionais – que mais de um milhão de africanos escravizados foram trazidos a um Brasil já
independente, para servirem aos interesses econômicos de uma elite escravocrata que não
apenas não pagaria por esse crime, mas também compunha câmaras e poderes políticos que
determinavam sua própria impunidade. Ao mesmo tempo, a partir desse crime, essa pequena
elite política e econômica que lucrava com a escravidão consolidava a estrutura desigual e
injusta do país.
______
Exempli�cando
A ilegalidade do trá�co negreiro
O historiador Luiz Felipe de Alencastro, especialista no tema, coloca, de forma exemplar, o
caráter estruturalmente ilegal e imoral da escravidão/trá�co negreiro na fundação de nosso país.
Segundo ele, desde 1818 havia tratados que vetavam o trá�co de escravos, mas isso não coibiu a
entrada de milhares de africanos no país, do citado ano até 1856.
Muitos desses escravos, mesmo com a lei de 1831, que garantia a sua liberdade, foram mantidos
cativos pelos seus senhores que não foram, posteriormente, condenados por tal crime. Como o
autor cita, foram 760 mil escravos que entraram até 1856 e que foram mantidos, ilegalmente,
como escravos até a publicação da Lei Áurea, em 1888. Observe:
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Sociedade Brasileira e Cidadania
“Resta que este crime coletivo guarda um signi�cado dramático: ao arrepio da lei, a
maioria dos africanos cativados no Brasil a partir de 1818 - e todos os seus
descendentes - foram mantidos na escravidão até 1888. Ou seja, boa parte das duas
últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente
ilegítima, a escravidão do Império era ainda - primeiro e sobretudo - ilegal. Como
escrevi, tenho para mim que este pacto dos sequestradores constitui o pecado
original da sociedade e da ordem jurídica brasileira. Firmava-se duradouramente o
princípio da impunidade e do casuísmo da lei que marca nossa história e permanece
como um desa�o constante aos tribunais e a esta Suprema Corte.
Consequentemente, não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança
escravista.” (ALENCASTRO, 2010, [s.p.])
Perspectiva culturalista da corrupção nacional
Outra interpretação clássica na historiogra�a e na sociologia, que nos ajuda a entender as
relações entre corrupção e história nacional, está em uma perspectiva culturalista, que enfatiza
como os valores, os costumes e a cultura herdados da sociedade portuguesa, que prevaleceram
na formação histórica do país, são determinantes para se explicar esse traço do funcionamento
de poder político no Brasil.
O debate evidencia como esses valores culturais privilegiam o caráter privado, os interesses
particulares e individuais, em detrimento do público e do coletivo. A explicação da enraizada
corrupção no Estado brasileiro é feita, assim, a partir de chaves de interpretação como a tradição
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Sociedade Brasileira e Cidadania
clientelista (prática eleitoreira), o patrimonialismo (a fusão de interesse privado e público) e o
nepotismo (favoritismo de parentes).
O historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), em 1936, escreveu uma obra de referência
para entendermos as “raízes” desses traços de comportamento na política brasileira que
di�cultam a separação do que é público e privado (HOLANDA, 2007). O autor faz alusão ao
“personalismo exagerado” como marca da cultura dos povos ibéricos, entre os quais estão os
portugueses, o que ajuda a entender as características de funcionamento das nossas
instituições movidas pela “desorganização”, “falta de espírito de solidariedade”, “individualismo”
e manutenção de “privilégios e hierarquias”.
Para Holanda, o patrimonialismo – visão que resguarda o próprio patrimônio privado – é a marca
da gestão política no país, herdada dos portugueses:
“No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema
administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados aos interesses
objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao
longo da nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que
encontram seu ambiente pró pessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da
família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura na nossa sociedade.”
(HOLANDA, 2007, p. 146)
Desse modo, na interpretação de Holanda, o “homem cordial”, símbolo dessa lógica herdada da
colônia, transformaria o mundo público em uma projeção da vida privada. As relações políticas,
que dependem do respeito à esfera pública, são obstaculizadas pelas relações pessoais, nas
quais interesses e afetos pessoais moldam (ou burlam) a lei sempre que conveniente.
Em outra interpretação clássica, Raimundo Faoro (1925-2003), em seu Os donos do poder
(1958), buscou explicar os cenários de disputa política no Brasil e a reprodução da concentração
de poder (econômico e político) em determinadas famílias/grupos empresariais. Para o autor, é
possível falar de um “Estado patrimonial-estamental no Brasil”, no qual os interesses privados de
grupos poderosos totalmente desconectados da maioria da população prevalecem, em
detrimento de sua função pública.
Para o autor, essa questão se mantém mesmo após proclamada a República (1889) e só começa
a ser modi�cada nos anos 1930, com a campanha de nacionalização de Getúlio Vargas.
O Brasil dos séculos XX/XXI e a corrupção
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Se para Faoro o período Vargas foi um momento importante da mudança na relação entre Estado
e população, o caráter autoritário de seu governo – sobretudo no Estado Novo (1937-45) –,
porém, deixou à época pouco espaço para se discutir cientí�ca e abertamente o grau de
transparência das instituições públicas nesse período.
O mesmo ocorreu durante a Ditadura Militar (1964-1984). A negação do direito de participação
,e
controle do exercício do poder político pelos cidadãos desse regime interditou qualquer
discussão sobre o tema da corrupção, já que o poder militar deveria ser considerado
incontestavelmente como o mais isento de corrupção. Nesse período, por exemplo, um dos
casos de corrupção mais escandalosos, da instituição de caridade gerida pelos militares,
Capemi, no Rio de Janeiro, foi resolvido com balas, conforme explica Cavalcanti (1991):
“Suspeitava-se na época que parte do dinheiro atirado pela janela da Capemi ia parar
numa caixinha preparada para eleição do general Otávio Medeiros, ministro-chefe do
SNI, à presidência da República. Mas não era muito saudável expor tais teorias em
público. Foi por essas e outras que Alexandre von Baumgarten, um homem que sabia,
falava e escrevia demais, acabou sendo assassinado, juntamente com sua mulher
Janette Yvone Hansen, e o pescador Manuel Augusto Valente Pires, dono da traineira
Mirimi, na madrugada de 13 de outubro de 1982.” (CAVALCANTI, 1991, p. 107)
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Não por acidente, muitas pessoas alegam que nos tempos da ditadura “não ouviam falar de
corrupção”. Em qualquer regime de exceção em que a imprensa e os meios de comunicação
passam a ser controlados pela censura prévia – e aqueles que a desa�am, correm risco de vida
– é esperado que a sociedade não debata ou divulgue escândalos de corrupção. É importante,
nesse sentido, diferenciar a existência da corrupção de sua percepção pelo corpo da sociedade.
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Pesquise mais
A cultura da impunidade e a Ditadura
Na palestra FOI para isto que lutamos pela liberdade? – entre os minutos 9 e 18 – o historiador
José Alves de Freitas Neto expõe os efeitos da “não condenação das mazelas do regime militar”
no período de transição democrática. O historiador explica “a impunidade que se perpetua”, tanto
em relação aos graves crimes contra a humanidade cometidos nesse período – como a tortura,
assassinatos em massa, entre outros – quanto também os prejuízos aos cofres públicos. A
“interdição de falar das mazelas do regime ditatorial” e o “esquecimento e silenciamento”
impostos estão diretamente ligados à falsa ideia de que regimes militares e autoritários estão
isentos de corrupção.
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A instituição do regime democrático, com a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) e a a�rmação
da garantia da participação cidadã, abriu espaço para que essa discussão se tornasse pública e
para que os mecanismos de controle do poder fossem aplicados.
Por esse motivo, os primeiros estudos realizados no Brasil sobre o tema passaram a ser
produzidos nesse período e ganharam ainda mais força na década de 1990, com o processo de
impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, que, para fugir do processo,
renunciou ao seu cargo, �cou um tempo inelegível e, depois, continuou atuando no cenário
político brasileiro como senador. Aos poucos, o chamado “presidencialismo de coalizão” surgido
com a Nova República expunha os dilemas da reconstrução da democracia no Brasil, a partir de
acordos – muitas vezes obscuros – da elite política do país.
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Assimile
O presidencialismo de coalizão
Para compreender a expressão “presidencialismo de coalizão”, leia o trecho do artigo de Sylvio
Costa (2013), disponível no portal Congresso em Foco, indicado a seguir:
“A expressão “presidencialismo de coalizão” foi usada há 25 anos no título de um
artigo acadêmico do cientista político Sérgio Abranches, ao qual se atribui a criação
do termo. Ela designa a realidade de um país presidencialista em que a fragmentação
do poder parlamentar entre vários partidos (atualmente, 23 têm representação no
Congresso Nacional) obriga o Executivo a uma prática que costuma ser mais
associada ao parlamentarismo.Para governar, ele precisa costurar uma ampla
maioria, frequentemente contraditória em relação ao programa do partido no poder,
difusa do ponto de vista ideológico e problemática no dia a dia, em razão do potencial
de con�itos trazido por uma aliança formada por forças políticas muito distintas entre
si e que com frequência travam violenta competição interna. Daí o que Abranches
apresentou como o “dilema institucional” brasileiro. Mesmo eleito diretamente (o que
https://www.youtube.com/watch?v=bCQKe6nDihU
https://www.youtube.com/watch?v=bCQKe6nDihU
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não ocorre no parlamentarismo, onde o Legislativo forma o gabinete governamental),
o presidente da República, em uma nação presidencialista, torna-se refém do
Congresso. Este, por outro lado, embora forte o bastante para azucrinar a vida do
presidente de plantão, não possui musculatura su�ciente para ditar o ritmo da política
e enfrentar com razoável autonomia e celeridade as grandes questões nacionais.”
(COSTA, 2013, [s.p.])
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Sabemos que a discussão sobre corrupção continuaria nos anos seguintes – com o escândalo
da compra de votos de deputados para a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo
– e, no século XXI, sobretudo com o processo do chamado Mensalão, durante a presidência de
Luís Inácio Lula da Silva. Esse debate se acentuou, nos últimos anos, particularmente após a
manifestação da crise econômica no país, a partir de 2014.
Os polêmicos processos de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) e de prisão do
ex-presidente Lula (PT) também fazem parte desse cenário. O ex-deputado Eduardo Cunha
(PMDB) e o ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo (PSDB) também foram presos por
denúncias de corrupção.
Por outro lado, outros políticos não tiveram condenação mesmo após a apresentação de graves
evidências, como o ex-presidente Michel Temer (PMDB) e o deputado federal Aécio Neves
(PSDB). Muitas questões sobre esses casos, como sabemos, ainda estão abertas. Essa
discussão, na verdade, é considerada como um dos fatores mais incisivos hoje na divisão da
sociedade brasileira.
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� Pesquise mais
“A dinâmica estrutural das redes de corrupção”
Leia o trecho da notícia a seguir, a respeito das conclusões de um estudo sobre a corrupção no
Brasil das últimas décadas:
“Na trama do Brasil real não há um personagem principal que lidera um grande
esquema de desvio de dinheiro público, como por vezes ronda a imaginação popular.
Mas, sim, uma rede bem engendrada de relacionamentos da qual foram mapeados
404 nomes – entre políticos, empresários, funcionários públicos, doleiros e laranjas –,
de pessoas envolvidas em 65 escândalos de corrupção entre 1987 e 2014. “Essas
redes criminosas operam de forma similar ao trá�co de drogas e às redes terroristas”,
explica Luiz Alves, pós-doutorando no Instituto de Ciências Matemáticas e de
Computação da USP, em São Carlos, e um dos cinco pesquisadores do projeto. A
investigação foi feita com base em escândalos de corrupção divulgados na grande
imprensa a partir de 1987. “Antes disso, não temos documentação sobre corrupção.
O que não signi�ca que não existia, mas sim, que não havia uma imprensa livre para
expor os casos”, explica Alves.” (OLIVEIRA, 2018, [s.p.])
Problema da corrupção no Brasil
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Sociedade Brasileira e Cidadania
O grande mal relacionado à forma espetacularizada com a qual se discute o problema da
corrupção no Brasil – independentemente do posicionamento político em questão – é o de tirar o
foco do que está realmente em jogo na corrupção: os malefícios ao bem comum. É por esse
motivo que José Arthur Rios (1987) descreve a corrupção como uma grande
“fraude social”; uma “forma de espoliação do povo comum”; uma “fonte de crime e
extorsões” (RIOS, 1987, p. 88).
Alguns estudiosos da corrupção também destacam a impossibilidade de cálculo desse
fenômeno ao afetar o “equilíbrio de uma sociedade”:
“Na maioria das vezes o produto maior da corrupção é o cinismo em face dos
negócios públicos” e também o “elemento desagregador da moral pública sobretudo
nos jovens”; “o desgaste institucional, a descrença e o cinismo generalizado” (RIOS,
1987, p. 87 e 96).
Tratam-se de prejuízos incalculáveis, re�etidos principalmente no “afastamento da política”,
,a
banalização dessa esfera tão importante da vida em sociedade, justamente por ser a única
dimensão capaz de resguardar os interesses gerais e coletivos em detrimento dos interesses
privados.
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Qual é o efeito �nal desse processo de criminalização da política? Ora, uma maior concentração
de poder, que contradiz os princípios democráticos e apenas propicia a reprodução e o
aprofundamento da corrupção! Por esse motivo, lembremo-nos de que
“a banalização da corrupção não é a mesma coisa que a generalização da corrupção”
(PINTO, 2011, p. 10).
Com essa expressão, a cientista política Céli Regina Pinto quer chamar a atenção ao fato de que,
apesar dessa marca negativa, o Estado brasileiro não pode ser reduzido apenas à corrupção,
uma vez que
“outras formas de governar habitam a política brasileira”, respeitosas e
comprometidas com o público (PINTO, 2011, p. 10).
"Nosso desa�o, enquanto sociedade, é saber discernir a atuação do poder público em
prol do bem público, para que possamos garantir que o poder político sirva aos
interesses gerais da população, e não apenas à sua parcela privilegiada. Esse desa�o
é ainda maior no momento atual de aguda crise econômica vivida pelo Brasil, e por
muitos outros países no mundo, no qual se manifesta a escandalização generalizada
da corrupção, que é também instrumentalizada pelas disputas políticas e pela mídia"
(PINTO, 2011, p. 11).
Conforme explica Pinto, o discurso da mídia sobre a corrupção “condiciona a forma como cada
brasileiro se relaciona com o mundo da política” e tem um peso não desprezível na formação de
opinião. Seu principal efeito é o de
“impossibilitar uma discussão política sobre a questão, que ultrapasse uma
indignação moralista” (PINTO, 2011, p. 11).
Disso deriva o dilema dos regimes democráticos nos quais a denúncia da corrupção é permitida,
porém não deixa de ser também uma arma política alimentada pela mídia e por meios de
comunicação, sobretudo nos períodos eleitorais. O importante é entendermos que os
mecanismos democráticos de controle da corrupção são os únicos que podem realmente
combatê-la.
Os regimes autoritários jamais serão um antídoto à corrupção. A única diferença, como já
destacado, é que nesses regimes os escândalos de corrupção devem ser necessariamente
abafados ou eliminados para garantir a manutenção do poder.
O combate à corrupção por vias democráticas nos ensina, na verdade, que esse problema não é
um mal crônico; ele pode ser combatido e reduzido (FILHO; KUNTZ, 2008). No entanto, trata-se
de um processo constante de exercício da cidadania que de forma alguma pode signi�car
“criminalização da política”, difamação pouco comprometida com a veracidade das acusações,
censura.
Alternativamente, há um rol de ações muito mais efetivas para o controle da corrupção, tais
como: a pressão popular pela transparência do funcionamento das instituições públicas; a
informação consciente dos interesses por detrás das decisões políticas; a recusa da impunidade
dos infratores (após serem condenados seguindo o princípio do devido processo legal e da
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imparcialidade); a busca por canais de informação menos comprometidos com o poder político;
a existência de uma mídia e imprensa livres, transparentes e politicamente independentes; a
possibilidade de que a população tenha acesso a uma prestação de contas (accountability); a
alternância de poder. Todas essas iniciativas deveriam ser seriamente discutidas e aplicadas no
Brasil.
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O movimento global Transparência Internacional não considera a corrupção como algo natural,
impossível de ser combatida nas empresas, no Estado, no cotidiano das pessoas. É interessante
notar que esse movimento coloca a discussão da corrupção em termos sistêmicos, não apenas
éticos, relacionados ao comportamento de um indivíduo em particular. Além disso, a luta
anticorrupção jamais é dissociada da luta pela justiça social, realização de direitos e da paz.
Para saber mais, acesse o site do movimento, indicado a seguir: TRANSPARÊNCIA
INTERNACIONAL BRASIL.
Conclusão
A situação-problema desta aula traz uma re�exão sobre a forma como a corrupção vem sendo
discutida no Brasil. A questão central é se essa forma traz ao conhecimento da população
brasileira os problemas mais estruturais – econômicos e políticos – implicados. Paralelamente, é
https://transparenciainternacional.org.br/
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preciso se perguntar se essas questões estruturais são consideradas nas políticas propostas
para combater de modo mais e�ciente a corrupção.
Para a re�exão sobre o tema, ressaltou-se a necessidade de entendimento da relação do público
e do privado na noção de corrupção, que remete à necessidade de entender se a corrupção
existe apenas no setor público ou se podemos analisá-la também no setor privado e,
particularmente, na imbricação dessas duas esferas.
Conforme a reportagem da Agência Brasil, que divulga os resultados do ranking internacional de
percepção da corrupção, fornecidos pelo Movimento da Transparência Internacional, houve uma
piora dessa percepção no Brasil desde 2014.
“No entendimento da Transparência Internacional, a piora no ranking se deve à
percepção de que os fatores estruturais da corrupção nacional seguem inabalados,
tendo em vista que o Brasil não foi capaz de fazer avançar medidas para atacar de
maneira sistêmica esse problema. “É fato que as grandes operações de investigação
e repressão dos últimos anos trouxeram avanços importantes, como a redução da
expectativa de impunidade e o estabelecimento de um novo padrão de e�ciência para
estas ações”, disse Bruno Brandão, representante da Transparência Internacional no
Brasil.Para Brandão, não houve, em 2017, qualquer esboço de resposta sistêmica ao
problema. “Ao contrário, a velha política que se aferra ao poder sabota qualquer
intento nesse sentido. Se as forças que querem estancar a sangria se mostram
bastante unidas, a população se divide na polarização cada vez mais extremada do
debate público, o que acaba anulando a pressão social e agravando ainda mais a
situação”.” (SOUZA, 2018, [s.p.])
O estudo cientí�co de Geraldini (2018), que teve por objetivo investigar o discurso da mídia sobre
a corrupção no Brasil, ajuda-nos a pensar essas questões. Segundo o autor: “Em uma
democracia de massa, os meios de comunicação selecionam determinados objetos em
detrimento de outros, seleção essa que molda a agenda do público” (GERALDINI, 2018, p. 35).
Os resultados da pesquisa cientí�ca do autor sobre esse discurso apontam como a corrupção
está longe de ser discutida em termos estruturais, conforme instrumentos oferecidos pelas
ciências sociais e pela economia que foram analisados na presente aula:
“Parece haver certa seletividade de publicação no que diz respeito às instituições e às
pessoas públicas que acabam por se tornar alvo dos escândalos de corrupção: por
um lado, líderes populares da América Latina têm sido frequentemente alvo de
denúncias de corrupção. Por outro lado, e tendo em vista o caso brasileiro, mostrou-
se por exemplo que a corrupção enquanto tema só entra de�nitivamente na agenda
dos jornais a partir de 2006 — ou seja, após a crise do chamado “mensalão”. Isto é , o
tema não foi amplamente explorado.” (GERALDINI, 2018, p. 14)
Por exemplo, em que momento a mídia trouxe em questão as desigualdades sociais internas ao
Brasil e a exclusão da participação cidadã dos grupos sociais por elas mais atingidos, que são
acentuadas pelo desvio de dinheiro público? Em algum momento discutiu-se se a forma de
combater a corrupção no Brasil considera esse problema estrutural e histórico da formação e
desenvolvimento da economia e do sistema político no Brasil?
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Foi seriamente discutido o fosso que existe entre o exercício do poder político e a representação
efetiva dos interesses mais gerais da população? Em algum momento discutiu-se
,como a
corrupção tende a ser mais reduzida nos países em que as desigualdades sociais são menores e
a participação cidadã e a democracia são mais efetivas?
Essa dimensão mais sistêmica da corrupção, segundo o jurista Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2016),
diz respeito a
“um problema estrutural de um modo de ser político” (FERRAZ JR., 2016, p. 19).
Para o autor, os antigos tratavam a corrupção sobretudo a partir da sua dimensão ética, porém,
com a emergência e o desenvolvimento dos Estados-nação e do mercado capitalista na
modernidade, o sentido dessa noção adquire um teor
“eminentemente político e afeta particularmente o exercício da democracia nos seus
contornos liberais (Estado de direito)” (FERRAZ JR., 2016, p. 19).
Para essa análise estrutural, é necessário o entendimento da relação implícita do público e do
privado na noção de corrupção. O senso comum tende a apresentar o problema da corrupção
como algo que existe apenas no setor público, defendendo a falsa tese de que o setor privado
seria mais protegido desse mal que assola a maior parte das sociedades do globo.
Basta fazermos uma pesquisa muito básica sobre os livros e estudos cientí�cos publicados na
última década, para percebermos como o setor privado está profundamente envolvido no
sistema de corrupção. Crimes como a fraude nos balanços das empresas para conseguir obter
melhor preço na venda de ações, o uso privilegiado de informações para se bene�ciar nos
negócios, o suborno e o pagamento de propinas a agentes públicos, a fraude ao licenciamento
ambiental e as operações ilícitas que dani�cam o meio ambiente, a fraude com relação à
obediência da legislação de proteção à saúde dos trabalhadores, as falsas falências de
empresas, que têm o mero propósito de desobrigá-las do pagamento de dívidas junto aos
trabalhadores, aos fornecedores e ao erário público, dentre muitos outros exemplos, evidenciam
o enorme poder de setores econômicos – sobretudo quando representados por grandes
corporações e empresas transnacionais – e sua interação com o modo de agir do Estado.
Além disso, a ideia de que a privatização de inúmeras empresas, bens e serviços públicos é o
remédio mais e�caz para se combater a corrupção no setor público não tem nenhum
embasamento cientí�co, pois ignora o que uma vasta literatura tem demonstrado nos últimos
anos sobre as novas formas de corrupção, que nascem justamente de processos de privatização
de bens, serviços e ativos públicos. A relação entre o público e o privado não desaparece apenas
porque o papel do Estado é reduzido por meio de processos de privatização, pelo contrário.
A questão de os políticos serem comissários do poder econômico e não exercerem a sua função
de representar os cidadãos e seus interesses gerais é o problema de fundo que não podemos
negligenciar. Além da importante questão do interesse público, esse debate envolve a análise de
efeitos mais amplos relativos ao exercício do poder político em uma sociedade, sobretudo
remetendo, como explica Johnston (2001), ao signi�cado de democracia.
Nesse sentido, há transações que são corruptas justamente por
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“negarem o processo democrático, que não é simplesmente um conjunto de ‘regras
do jogo’, mas sim valores importantes, como representação, accountability [prestação
de contas], debate aberto e igualdade” (JOHNSTON, 2001, p. 23).
Cabe, portanto, a discussão das questões estruturais da corrupção para que possamos ter
melhores parâmetros para discutir os “remédios” apresentados para seu combate. É claro, longe
dessa discussão nos afastar da política – como se pensar o coletivo e a vida em sociedade
fosse algo menor, por ser tão suscetível à corrupção –, vamos retomar o sentido da cidadania e
da participação democrática como o principal antídoto para combater a corrupção.
Aula 2
Por que a miséria persiste em nosso país?
Introdução da aula
Qual é o foco da aula?
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Nesta aula, você verá as raízes históricas da miséria no Brasil.
Objetivos gerais de aprendizagem
Ao longo desta aula, você irá:
descrever os pontos importantes do mapa da miséria no Brasil;
identi�car os problema urbanos vividos no século XXI;
distinguir alguns programas de combate à pobreza.
Situação-problema
Sabemos muito bem que a miséria no Brasil não é um fenômeno novo; pelo contrário, tem raízes
históricas muito antigas, que se reproduzem ao longo do tempo. Por conta de nossos objetivos,
nós nos concentraremos no século XXI – mas o encorajamos sempre a seguir estudando a
história do país para entender a historicidade de nossos dilemas. Como você explicaria as
estimativas de que, no Brasil, cerca de 13 milhões de pessoas passam fome enquanto 41 mil
toneladas de alimentos são desperdiçadas por ano?
Para alguns, a pobreza – e a fome decorrente dela – é considerada como algo natural, que
sempre existiu e continuará existindo no futuro. Por isso, para estes, essa questão diz respeito à
sorte e ao comportamento do indivíduo na sociedade: se ele for esperto e não muito azarado,
pode se esforçar e lutar sozinho para combater a pobreza e a fome. Se não conseguir, não haverá
o que fazer.
Enquanto isso, muitos outros procuram as razões desse problema em um plano espiritual que
explicaria o mundo terreno. Assim, a fome é vista como uma sina, um destino, e os homens na
Terra nada podem fazer para modi�cá-la. Nessa perspectiva, no máximo, é possível oferecer a
caridade como paliativo.
No entanto, a visão cientí�ca é a de que esse fenômeno é produzido pelas relações
socioeconômicas, sendo possível identi�car – e enfrentar – suas causas objetivas.
Independentemente das correntes teóricas, o conhecimento produzido pelas diferentes ciências
sociais – a partir de método e evidências, portanto –, como a economia, a sociologia e a ciência
política, concordam com o pressuposto de que a fome é um problema que passa por escolhas
políticas e econômicas dos governos e da sociedade, podendo, assim, ser combatida por
políticas públicas e pela ação da sociedade.
Por exemplo, para José Graziano da Silva, diretor geral da Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO), e para Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz e membro
da Aliança da FAO pela Segurança Alimentar e Paz, a fome é, na verdade, um crime que alimenta
con�itos mais graves nas sociedades e ameaça a paz mundial (SILVA; ESQUIVEL, 2018).
No entanto, é importante entendermos que, mesmo dentro de um debate cientí�co – isto é,
racional, a partir de dados e de metodologias de pesquisa – se apresentam perspectivas
dissonantes. Como consequência, essas visões também resultam em diferentes formas de
enfrentar a fome.
Antes de uma leitura mais aprofundada do tema, como você encara esse dilema? Considera a
fome do outro um problema que também é seu, como um problema coletivo? Você enxerga a
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fome como um problema individual ou social? Que recomendações você daria para o combate à
fome no Brasil atual?
Mapa da miséria no Brasil
A tarefa de se discutir o mapa da miséria no Brasil nos obriga, antes de tudo, a fazer uma
pontuação sobre o contexto internacional, para que possamos entender a amplitude desse tema
e suas características particulares de desenvolvimento no país.
Conforme nos explica Chossudovsky (1999), a pobreza é um fenômeno global e atinge com mais
força os países do Sul Global, sendo que seu traço característico é o de aniquilar a subsistência
humana, ou seja, a possibilidade de sobrevivência das pessoas, destruindo sociedades inteiras.
Seu estudo foi produzido na década de 1990 e permanece ainda muito atual.
Para o autor, nesse período, a pobreza dizia respeito a 80% da população mundial, com uma
incidência muito mais acentuada nos países do Sul Global – ex-colônias –, já que os países ricos
do Norte Global (onde viviam 15% da população mundial) controlavam 80% da renda mundial, ao
passo que os países de média e baixa renda (onde viviam 85% da população mundial), apenas
20% da renda
,mundial (CHOSSUDOVSKY, 1999).
Esse quadro não se modi�cou nos anos 2000; pelo contrário, só tem se acentuado. Estimativas
da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação apontam 821 milhões de
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pessoas atingidas pela fome no mundo em 2017 (AZEVEDO, 2018).
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� Pesquise mais
A pobreza rural e urbana em grande escala é um problema tipicamente moderno, produto das
transformações das sociedades, do modo de produção capitalista e da Revolução Industrial. Por
esse mesmo motivo, a miséria no campo e a condição de indigência e de sofrimento da classe
operária – em particular na Inglaterra, Escócia e Irlanda da segunda metade do século XVIII em
diante – foram estudadas como um fenômeno, o pauperismo, e passaram a ser objeto de estudo
das diferentes áreas da economia, da sociologia, e até mesmo largamente retratada na literatura
da época.
Assista ao documentário Histórias da Fome no Brasil, que traz uma re�exão sobre a miséria na
história do Brasil, que não deve ser considerada como “natural” – como se existisse desde
sempre e devesse permanecer para sempre –, pois é possível de ser reduzida por meio de
políticas públicas. O vídeo é um documentário dirigido por Camilo Tavares, intitulado Histórias da
fome no Brasil (sugerimos que assista do minuto 0:00 ao minuto 12:10).
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De fato, a pobreza nos países do Sul Global é historicamente enraizada e disseminada por meio
do funcionamento do sistema de colonização. O Brasil é um exemplo claro disso. Os níveis de
pobreza do país sempre foram muito altos, sobretudo devido à alta concentração de renda e de
riquezas, que situa o país como um dos mais desiguais do mundo, com níveis acima da média
global. Segundo Souza e Medeiros (2017), a alta concentração de renda no topo da pirâmide
social permaneceu intocada na última década:
“A estabilidade da concentração de renda no topo no Brasil é preocupante porque os
níveis são muito altos para padrões internacionais [...]. Ainda que comparações
internacionais sejam sempre imperfeitas e a amostra seja enviesada em prol de
países mais ricos, o Brasil é claramente um ponto fora da curva. Somos um entre
apenas cinco países – com a África do Sul, Argentina, Colômbia e Estados Unidos –
em que o 1 por cento mais rico recebe mais de 15 por cento da renda total.” (SOUZA;
MEDEIROS, 2017, [s.p.])
Na prática, o Brasil “estar fora da curva” em relação aos padrões internacionais signi�ca
pertencer a uma sociedade na qual “seis brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade
da população”, ou seja, um pouco mais de 100 milhões de pessoas e os “5% mais ricos [da
população brasileira] detêm a mesma fatia de renda que os demais 95%” (ROSSI, 2017).
Paralelamente, 165 milhões de brasileiros vivem com uma renda per capita inferior a dois
salários mínimos (OXFAM, 2017).
O aumento da renda dos mais pobres e as políticas bem-sucedidas de combate à fome e à
miséria – que certamente são muito importantes, pois tiveram efeitos reais bené�cos para a
população brasileira socioeconomicamente mais vulneráveis – não foram su�cientes para
blindar o Brasil de sua “sina” da desigualdade e da pobreza.
Em 2014, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação anunciou que o
Brasil saía do mapa da fome. Após esse ano, com os efeitos perversos da crise – sobretudo o
aumento do desemprego, do subemprego e de pessoas que não têm nenhuma renda e não são
https://www.youtube.com/watch?v=zDyk-1NGoL4
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bene�ciadas por programas públicos de transferência de renda –, alertou-se sobre o risco de o
Brasil voltar novamente ao mapa da fome (AZEVEDO, 2018).
Estrutura das desigualdades de renda
É preciso perceber, portanto, que no século XXI a estrutura das desigualdades de renda e de
riqueza no Brasil não foi modi�cada. Isso nos ajuda a entender por que os efeitos da crise global
agravaram com tamanha rapidez a miséria. Esse agravamento, é claro, não está separado de
escolhas políticas que, ao contrário de agir nas causas da miséria, a acentua.
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Assimile
O grá�co a seguir foi extraído de um estudo da Fundação Getúlio Vargas (2018) e revela que, na
década de 2003-2013, houve uma signi�cativa diminuição da miséria em relação aos patamares
dos anos 1990. Todavia, a partir de 2014, a taxa de miséria volta a subir.
Se a miséria continuar subindo, o país poderá voltar rapidamente aos patamares de pobreza do
início dos anos 1990, época em que o Brasil enfrentava sérios problemas sociais. Por isso, o
brusco aumento da miséria, após 2014, faz necessária uma re�exão crítica às formas de
combate à miséria que não tocam nas questões estruturais envolvidas nesse problema.
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Grá�co da evolução da miséria. Fonte: Portal FGV.
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O mesmo estudo citado nos oferece dados concretos para entendermos o signi�cado do
aumento da miséria na sociedade brasileira, explicitando a existência, em 2018, de
“23,3 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, com rendimentos
abaixo de R$ 232 por mês; cerca de 11,2% da população. A miséria subiu 33% nos
últimos quatro anos. São 6,3 milhões de novos pobres — mais do que a população do
Paraguai – adicionada ao estoque de pobreza. Do �nal de 2014 até junho deste ano, o
Índice de Gini subiu a uma velocidade 50% maior do que vinha caindo na época de
queda da desigualdade brasileira, iniciada em 2001. Perfazendo quase quatro anos
consecutivos de aumento de concentração de renda. Isso não acontecia desde a
derrocada do Plano Cruzado de 1986 até 1989, o recorde de desigualdade nas séries
brasileiras.” (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2018, [s.p.])
Se somarmos os dados indicados com os fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geogra�a e
Estatística (IBGE), relativos às pessoas que vivem na linha de pobreza, com renda familiar
mensal de cerca de R$ 387,07, esse montante sobe para 50 milhões de brasileiros. No que se
refere à geogra�a dessa miséria, esses dados também revelam que a Região Nordeste do Brasil
concentra 43,5% dessa população vivendo na linha da pobreza, enquanto a Região Sul 12,3%
(OLIVEIRA, 2017).
Você já parou para pensar o que signi�ca para uma família viver com esse patamar de renda?
Pensemos, por exemplo, nos gastos mensais com o básico no supermercado, com o transporte,
com eventuais remédios. É preciso nos atermos ao fato de que essa miséria também tem cor e
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sexo, já que os negros e as mulheres são mais atingidos (PEARCE, 1978; MORAES, 2018;
FERNANDES, 2008; MARTINS; MARTINS, 2017).
José Graziano da Silva, diretor geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação, também dá destaque ao alto número de crianças que voltam a ser vítimas da fome
no Brasil (AZEVEDO, 2018). Além disso, estudos evidenciam que as famílias que moram na zona
rural (cerca de 15% da população brasileira, segundo o censo de 2010) estão mais expostas à
situação de pobreza, sobretudo se considerada a renda (BUAINAIN et al., 2012).
Essa questão nos leva a discutir a estrutura fundiária do Brasil. Para Sorj (2008), a alta
concentração de terras no Brasil é uma característica histórica do país, que se tornou ainda mais
complexa com a reorganização e o processo de transformação das relações de produção no
país pela agroindústria. Dados recentes revelam que
"[...] a concentração fundiária do país �ca evidente, seja pela análise nos dados
levantados pelo Censo Agropecuário do IBGE, seja pelos dados do Sistema Nacional
de Cadastro Rural - SNCR do Incra [...]. O índice de concentração de terra medido pelo
índice de Gini, com base no SNCR – de 0,83649 – é muito elevado. [...] as pequenas
propriedades – com até 4 módulos �scais de área somam mais de 5,4 milhões de
unidades, mas ocupam apenas 23,7% da área total dos imóveis rurais. [...] De outra
parte, as médias e grandes propriedades constituem menos de 9% do total e ocupam
76% da área.” (VALADARES et al., 2012, p. 266, grifo nosso)
______
Re�ita
Para Katia
,Maia, em entrevista concedida ao G1, “a terra expressa muito o que é uma sociedade
e a América Latina é a região com maior desigualdade na concentração de terra no mundo”
(GONZALEZ, 2016). Ao comentar os dados fornecidos pela OXFAM sobre concentração de terra
no Brasil, Katia Maia explica que o país ocupa o quinto lugar na América Latina – depois do
Paraguai, Chile, Colômbia, Venezuela – em termos de concentração de terra.
Essa pesquisa também indica que “aqueles [municípios] que estão em área de maior produção
agrícola do grande agronegócio têm os maiores níveis de pobreza e desigualdade. Porque gera
menos emprego e é mais concentrado [em termos fundiários]” (GONZALEZ, 2016).
O que essa constatação evidencia sobre a relação entre o agronegócio, concentração de terra e
pobreza no Brasil? A ideia de que o agronegócio pode ser a salvação da pobreza no Brasil condiz
com a realidade do país?
______
A concentração de terras no Brasil não está separada dos problemas urbanos que se agravam no
país. Como é notório, o processo de urbanização e industrialização no Brasil – e, em geral, na
América Latina –, ocorreu de forma desordenada, rápida e concentrada no século XX (em parte
da Europa, por exemplo, esse mesmo processo demorou dois ou três séculos para se efetivar).
Embora a indústria absorvesse parte dessa população, muitas das pessoas que migravam para a
cidade não conseguiam arranjar empregos e eram segregadas em bairros periféricos.
Hoje, os estudos têm mostrado como a atração de pessoas para morar nas cidades é
impulsionada mais pela reprodução da pobreza, devido a fatores de expulsão do campo, que se
combinam com a falta de oferta de empregos e de renda nas cidades (DAVIS, 2006).
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Em particular, esses estudos também mostram como há um aumento e uma multiplicação das
favelas (principalmente após os anos 1970), que passaram a expressar a fotogra�a da pobreza
nas cidades – e de todos os problemas sociais a ela relacionados (exploração do trabalho,
condições de vida, mortalidade, violência, insalubridade, segregação espacial).
Problemas urbanos no século XXI
Na mesma linha de raciocínio, Raquel Rolnik (2016) sugere uma re�exão importante ao
evidenciar que os problemas urbanos vividos no século XXI – como a globalização, a
�nanceirização da economia, a desindustrialização, o desemprego –, talvez sejam piores que os
problemas sociais “clássicos” do início do processo de industrialização e urbanização no século
XIX.
______
Re�ita
A Índia é um país conhecido pela enorme quantidade de pessoas que não têm habitação. Há
pessoas tão pobres que são obrigadas a dormir em seu local de trabalho, por exemplo, nas
o�cinas de costura, sentadas em uma cadeira ou deitados sobre uma mesa; ou mesmo,
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Sociedade Brasileira e Cidadania
sentadas sobre os seus “tuc-tuc” – veículos parecidos com uma bicicleta, destinados a
transportar passageiros – estacionados na rua.
Mãe e criança sem teto na Índia. Fonte: iStock.
Mas, não pense que essa questão da ausência de moradia é importante apenas em países
pobres. No Japão, por exemplo, também houve um aumento da pobreza com a crise mundial. No
trecho a seguir, a pesquisadora Mariana Roncato trata do aumento da “pobreza invisível”,
escondida nas lan houses ou nos “hotéis cápsulas" em Tóquio, Japão. Chamam-se “cyber-
refugiados” as
"[...] pessoas que não têm moradia e literalmente vivem em lan houses que funcionam
24 horas. Ou seja, são pessoas “sem teto”, mas que não necessariamente dormem na
rua. Eles e elas passam a noite na cadeira disponibilizada na lan house, dormem/se
acomodam como podem nela e, no dia seguinte, saem para trabalhar [...]. Trata-se de
uma forma de pobreza invisível, pois os cyber-refugiados continuam sendo
trabalhadores ativos, embora realizem trabalhos intermitentes e informais, o que não
os permite ter condições para alugar uma moradia.” (QUEM SÃO..., 2018, [s.p.])
Também nos Estados Unidos há um fenômeno parecido com os trabalhadores do famoso
parque de diversões da Disneylândia. Uma reportagem da Folha de São Paulo, Trabalhador no
entorno da Disney da Califórnia sofre com alto custo de vida, fala de uma trabalhadora – dentre
muitos outros – de uma loja desse parque, que “atende os clientes com um sorriso ensolarado”.
No entanto, “nenhum cliente sabe que ela dorme há meses na caçamba de sua picape e toma
banho no complexo temático” (TRABALHADOR..., 2018).
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/03/trabalhador-no-entorno-da-disney-da-california-sofre-com-alto-custo-de-vida.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/03/trabalhador-no-entorno-da-disney-da-california-sofre-com-alto-custo-de-vida.shtml
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Sociedade Brasileira e Cidadania
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As favelas são hoje, de fato, a expressão máxima da pobreza. Como mostra bem o estudo de
Mike Davis (2006), há uma “globalização das favelas”, que é a forma de moradia precária que se
dissemina em nível global, principalmente nos países do Sul Global (atingindo cerca de 80% da
população urbana desses territórios). Por esse motivo, muitos estudos têm alertado que a
pobreza urbana se tornaria o problema mais importante e explosivo do século XXI.
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Pesquise mais
Você já ouviu falar na Carolina Maria de Jesus (1914-1977), uma escritora que viveu por muitos
anos a fome e a miséria e, apesar disso, deixou diários escritos na década de 1960, que se
transformaram em livros e foram publicados no Brasil e em muitos outros países?
Leia a descrição de Carolina de Jesus de seu cotidiano: basta você escolher uma semana de
seus dias relatados. A autora o transportará para a vida sofrida, porém re�exiva e combativa, de
uma favelada. Repare na atualidade de suas palavras:
“Quando cheguei do palácio que é a cidade os meus �lhos vieram dizer-me que havia
encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu �z um pouco do macarrão
com feijão. E meu �lho João José disse-me:
__ Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo.
Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar [...].” (JESUS, 2014, p. 39)
Produção de desalojados
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Sociedade Brasileira e Cidadania
A questão da produção de desalojados – sobretudo relacionada a processos de �nanceirização
da moradia e de despejos – nos ajuda a entender esse cenário. No Brasil, estima-se que 6,9
milhões de famílias não possuem uma casa para morar (ODILLA; PASSARINHO; BARRUCHO,
2018.). Há um debate bastante vivo no sentido de se perguntar até que ponto esses números
espelham um dé�cit de moradia, tendo em vista a estimativa de que há um número equivalente
de imóveis desocupados no país.
Procura-se também entender até que ponto as políticas de moradia – pensadas de forma
individual e imbricadas ao fornecimento de créditos pelos bancos e ao mercado privado de
construção civil – resolvem ou pioram esse cenário do dé�cit de moradia nas cidades, sobretudo
nos períodos de desemprego e de rebaixamento de renda, como é o caso do nosso país na
atualidade (ROLNIK, 2016; FIX, 2011).
Em países como Espanha e Estados Unidos, desde 2008, houve um aumento signi�cativo de
pessoas que não conseguem pagar as prestações de seus imóveis e acabam perdendo não
apenas o imóvel, mas também o dinheiro investido (FIX, 2011). Esse processo, somado aos
despejos forçados devido à especulação �nanceira (ROLNIK, 2016), ao aumento do desemprego
e do subemprego, ajudam a entender por que hoje, nas cidades, há um aumento expressivo de
pessoas desalojadas e em situação de rua.
Os movimentos que lutam pela moradia e denunciam essa pobreza urbana re�etida na situação
dos sem-teto não estão separados desses processos estruturais de produção de desalojados.
Esses movimentos também mostram que a vulnerabilidade dessas pessoas e a sua exposição a
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Sociedade Brasileira e Cidadania
fatores sociais problemáticos podem se reverter em uma força de denúncia das contradições
das sociedades urbanas hoje, sendo determinantes para a transformação desses espaços
urbanos e para pressionar o Estado
,para a realização de políticas efetivas no atendimento a
essas populações.
Da mesma forma, é impossível entender a dinâmica de funcionamento dos Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra sem olharmos para os dados, já evidenciados, sobre a concentração de
terra e a pobreza rural no Brasil. O direito à terra, assim como o direito à moradia, é fundamental
para que possamos caminhar para uma sociedade mais equilibrada e também próspera.
Justamente por esse motivo, na grande maioria dos países que hoje são considerados
desenvolvidos não há, nem de perto, uma concentração fundiária semelhante à do Brasil.
Lembremos também que as famílias assentadas desse movimento adotam um modelo de
produção alternativo ao agronegócio, que contempla um número in�nitamente maior de famílias
envolvidas e é comprometido com a saúde da população brasileira e com a garantia da
biodiversidade de alimentos no país, pois não utilizam transgênicos e agrotóxicos.
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Assimile
É válido olhar para as respostas dos movimentos sociais às desigualdades e à pobreza no Brasil,
pois elas nos ajudam a entender essas mazelas como socialmente produzidas. De fato, os
movimentos sociais re�etem a ação organizada de uma coletividade para a defesa de
determinados interesses que são coletivos. As reivindicações desses movimentos nos permitem
identi�car os fatores objetivos e as especi�cidades que situam as desigualdades e a pobreza
como um fenômeno histórico, não como um processo inevitável.
Assim, evitamos cair nas armadilhas de representações das desigualdades sociais e da miséria
como naturais, ou seja, como se �zessem parte, desde sempre e para sempre, das sociedades;
ou ainda como algo decorrente de um mero “atraso” de populações que estão aprendendo a se
modernizar e quando, �nalmente, se modernizarem e alcançarem os padrões justos para o
desenvolvimento, poderão sanar seus problemas de desigualdade – ideia que remete à lógica
das velhas teorias racistas e evolucionistas do século XIX; ou, �nalmente, como um problema
individual, resultante da indolência dos pobres.
______
Diversos estudos têm mostrado os impactos perversos da atual crise na oferta e na qualidade do
emprego no Brasil, situação que foi agravada pelas políticas e reformas legislativas
recentemente aplicadas (KREIN; GIMENEZ; SANTOS , 2018). Com base nos dados do Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Di c*nto (2018) aponta que o Brasil, em julho de
2018, era o segundo país com maior taxa de desemprego na América Latina (12,3%, perdendo
apenas para o Haiti).
O tipo de trabalho majoritariamente ofertado hoje está longe de permitir a estruturação de uma
vida com segurança e dignidade. Constata-se a multiplicação dos mini jobs (empregos
precários), empregos temporários, sem garantias e sem direitos, com baixos salários, jornadas
longas, �exíveis e intensas. A explosão da terceirização no Brasil também contribui para esse
quadro da pobreza, já que os terceirizados ganham menos e são mais desprotegidos em relação
a direitos e proteção social.
As reivindicações dos trabalhadores, de suas categorias e sindicatos para um trabalho melhor
remunerado e protegido, que se opõem à tendência de deterioração da renda e devastação dos
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Sociedade Brasileira e Cidadania
direitos dos trabalhadores têm, portanto, um papel central nas sociedades modernas para
impulsionar as políticas sociais de distribuição de renda. A maior parte da sociedade brasileira
hoje depende de um salário para sobreviver, portanto, é importantíssimo que a qualidade do
emprego não seja negligenciada.
Além dessas perspectivas alternativas para um país mais igualitário, que partem de iniciativas da
própria sociedade – e são de enorme relevância para entendermos que esses problemas não são
“naturais” e podem ser combatidos –, devemos considerar também a importância das políticas
sociais e de combate à fome. Sem essas iniciativas e essas políticas, certamente caminharemos
para uma sociedade cada vez mais desigual, logo, também con�ituosa e violenta.
______
Assimile
A literatura é hoje razoavelmente consensual em entender a pobreza como um fenômeno
multidimensional (OLIVEIRA; BUAINAIN; NEDER, 2012). Isso signi�ca que a pobreza não é
apenas uma questão de ter ou não uma renda (ou do nível dessa renda), mas também de
escolaridade, tipo de emprego, acesso a saneamento básico, transporte, entre outros fatores.
Uma política pública e�ciente deve levar em consideração essa multidimensionalidade. No
entanto, como vivemos em uma sociedade na qual o dinheiro é central, muitos estudos baseiam
suas análises da pobreza em um de seus elementos fundamentais: a renda.
Programas de combate à pobreza
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Sociedade Brasileira e Cidadania
No Brasil, pode-se destacar alguns programas que foram importantes no período recente para o
esforço de combate à pobreza. Em primeiro lugar, a implementação da aposentadoria rural, que
garantiu aos trabalhadores rurais uma renda de um salário mínimo ao chegar à terceira idade.
Em segundo lugar, a política de valorização do salário mínimo, já que parte importante da
população brasileira tem seus salários vinculados a esse patamar mínimo e outra parte recebe
benefícios sociais também atrelados ao salário mínimo. Em terceiro lugar, o Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que provê crédito subsidiado – ou, às vezes, a
fundo perdido –, para pequenos produtores agrícolas.
E, �nalmente, o Bolsa Família, resultante da conglomeração de programas sociais anteriormente
dispersos, atribuindo-lhes mais organicidade (em vez de as famílias pobres precisarem lidar com
inúmeros programas distintos, passaram a ser atendidas de forma uni�cada, pelo Bolsa Família),
volume (os valores destinados a esses benefícios sociais aumentaram muito; de 2003 a 2014, os
montantes direcionados para o Bolsa Família passaram de R$ 3,4 bilhões a R$ 27,2 bilhões) e
capilaridade (o programa passou a atender famílias do país todo, até mesmo de pequenas
comunidades do sertão nordestino ou da Amazônia).
O Bolsa Família foi iniciado em 2003, com o atendimento de mais de 3 milhões de famílias, e
chegou a contemplar, em 2014, 14 milhões de famílias. Segundo a pesquisa baseada em extensa
coleta de dados e relatos realizada por Rego e Pinzani (2013), o pequeno montante transferido
pelo programa para cada família assume um papel vital para os bene�ciários, de forma que
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cortá-lo signi�caria, além de negar a cidadania dessas pessoas, condená-las a passar fome,
expondo-as também ao risco de morte. Para Rego e Pinzani,
"[...] na grande maioria das famílias pesquisadas, o repasse representa o único
rendimento monetário percebido e, em vários casos, constitui a primeira experiência
regular de obtenção de rendimento. Antes disso, a vida se resumia à luta diária para
obter comida, que poderia vir desde a caça como da ajuda de familiares. Todas
[bene�ciárias do bolsa família] reconheceram que, se suas vidas eram duras, sem a
bolsa o seriam ainda mais.” (2013, [s.p.])
O sucesso do Bolsa Família foi reconhecido internacionalmente, a ponto de o programa tornar-se
referência para muitos outros países e até mesmo para o Banco Mundial. Mas, ainda assim, o
programa foi – e ainda é – alvo de uma série de críticas. As mais recorrentes se baseiam na ideia
de que esse programa criaria uma “dependência” dos bene�ciários em relação ao Estado ou
incentivaria a “vagabundagem”.
Além de preconceituosa contra os pobres, há uma incoerência lógica gritante nesse tipo de
argumentação. Um raciocínio lógico muito basilar, que contempla os valores mensais dessa
bolsa – que em 2018 eram de no máximo R$ 195 – e compara-os com o custo de vida mínimo
no país (por exemplo, o preço dos alimentos, transporte, moradia) é su�ciente para entendermos
que essa política não desestimula o trabalho e não produz “vagabundagem”.
______
Assimile
O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) oferece,
mensalmente, uma pesquisa nacional que
,e perspectivas �losó�cas
desenvolvidas para abordar tais problemas, mas, pelo contrário, ressaltar a pluralidade de
situações em que não há respostas absolutas ou preconcebidas, algo que eleva a importância do
estudo da ética em nosso desenvolvimento individual e coletivo.
Em certo sentido, a emergência dessas questões é algo incontornável da vida humana, e a
desatenção em relação aos dilemas apresentados tende a ser ainda mais problemática do que
as dúvidas por eles suscitadas, na medida em que sugere uma condução automatizada dos
afazeres cotidianos, cujo efeito prático é a negação da própria liberdade.
______
Re�ita
O cidadão obediente II
“Era assim que as coisas eram, era esta a nova lei do território, baseada na ordem do
Führer; o que quer que ele (Eichmann) tenha feito, fez, até onde podia ver, como um
cidadão obediente às leis. Ele fez seu dever, conforme disse à polícia e à corte várias
e várias vezes; ele não apenas obedeceu ordens, ele também obedeceu a lei.”
(ARENDT, 2006, p. 135, tradução nossa)
O trecho citado foi retirado do livro Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt. Nessa obra, a
�lósofa relata o julgamento de Adolf Eichmann, um tenente-coronel das forças nazistas alemãs
que teve papel fundamental na organização dos campos de extermínio do Holocausto. Ao longo
livro, Eichmann nega que tenha agido com crueldade no processo que levou ao assassinato de
milhões de judeus nas décadas de 1930 e 1940.
Conforme se depreende do excerto, o tenente-coronel justi�cou sua conduta pela simples
obediência a mandamentos superiores, como ordens de seus chefes e as leis vigentes naquele
período, algo que, segundo ele, retiraria qualquer culpa de suas ações.
Com base nos temas discutidos nesta aula, você diria que a obediência é sempre uma virtude?
De um ponto de vista ético, como você analisa o argumento de Eichmann?
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Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Passados mais de dois mil anos do advento da ética enquanto campo fundamental do
conhecimento humano, continuamos a deparar com situações nas quais o exercício de nossa
liberdade de escolha encontra-se cheio de dúvidas e angústias diante da inexistência de valores
ou critérios incontestáveis para o agir humano.
Se é verdade que os avanços tecnológicos nos auxiliam a encontrar algumas respostas para
problemas cotidianos que atingem a humanidade, formulando maiores certezas em temas antes
duvidosos, temos de reconhecer que as potencialidades oferecidas pelo desenvolvimento
cientí�co contemporâneo abrem novos campos de discussão envolvendo a ética.
Inovações nas áreas de biotecnologia, tecnologia da informação e automação, por exemplo, ao
mesmo tempo em que aumentam os horizontes da ação humana, levantam questionamentos
éticos essenciais: devemos clonar seres humanos? As empresas de telecomunicação deveriam
assumir compromissos no combate à propagação de notícias falsas? Podemos criar robôs
militares com capacidade letal? Assim, a ampliação das atividades que conseguimos fazer eleva
proporcionalmente os questionamentos sobre o que efetivamente devemos fazer.
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Assimile
Ética e técnica
“Técnica e ética completam-se, necessariamente, para impulsionar os povos e as
civilizações a se unirem. A tecnologia, divorciada da ética, conduz à inevitável fratura
da humanidade. A ética, ignorante do saber tecnológico, é ine�ciente e vazia. O
grande projeto de humanização do mundo exige que a ciência e a técnica sejam
�nalmente reconhecidas como patrimônio da humanidade, insuscetíveis, portanto, de
qualquer tipo de apropriação, privada ou estatal.” (COMPARATO, 2016, p. 439)
______
Neste mesmo sentido, a ampliação das capacitações humanas contrasta com a persistência de
desa�os para os quais a humanidade já dispõe de soluções tecnológicas, revelando que a
continuidade de certos problemas individuais e/ou coletivos não se deve a questões técnicas,
mas, sim, às escolhas que fazemos enquanto sociedade organizada – o que revela um vínculo
primordial entre a ética e a política.
Esse zelo pela convivência coletiva defendido pela �loso�a ética enriquece toda a rede de
relações nas quais nossa existência se desenvolve, bem como reconhece os aspectos
valorativos essenciais de nossa condição humana. Nesse sentido, é preciso o ensinamento do
professor Fábio Konder Comparato de que:
“o ser humano só realiza integralmente as suas potencialidades, isto é, somente se
aproxima do modelo superior de pessoa, quando vive numa sociedade cuja
organização política não se separa das exigências éticas e regula, de modo
harmonioso, todas as dimensões da vida social.” (COMPARATO, 2016, p. 587)
Perceba a função emancipadora do saber ético, garantindo que a inexistência de modelos
predeterminados do que deve constituir o agir humano não seja considerado uma limitação às
nossas vidas, mas, pelo contrário, que essa condição permita o exercício integral de nossas
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liberdades, estimulando a re�exão constante sobre o mundo que nos cerca e sobre os caminhos
para uma existência plena e em harmonia com os fundamentos de nossa humanidade.
Conclusão
A liberdade é um dos valores fundamentais e marcantes da existência humana. Diferentemente
de outros animais, cuja ação é orientada majoritariamente pelo instinto, o ser humano encontra
na utilização de sua racionalidade, ao exercer seu livre arbítrio, a capacidade de fazer escolhas
diante de uma situação concreta.
Essa liberdade de julgamento e conduta é essencial na medida em que as situações com que
deparamos ao longo da vida são inúmeras e imprevisíveis, tornando inviável a elaboração, ainda
que mental, de uma sistematização rígida das atitudes a serem tomadas.
Uma vez que os seres humanos vivem em comunidades, tentamos assegurar que todas essas
avaliações e condutas individuais criem, entre si, uma relação humanizada, estabelecendo um
entendimento coletivo direcionado ao aprimoramento da vida em grupo; trata-se do
desenvolvimento de nosso saber ético.
Se bem verdade que nossas liberdades possibilitam que nos manifestemos de acordo com
nossas individualidades, existem referências compartilhadas daquilo que devemos assumir
como sendo condutas e �nalidades éticas, de modo distinto de padrões morais e religiosos
aceitos por cada indivíduo.
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Assim, percebemos que o raciocínio ético é uma atividade eminentemente humana. Como
consequência, a ética não está sujeita a processos de codi�cação e programação, como aqueles
observados na construção de máquinas, algo que limita o uso da tecnologia em contextos nos
quais podemos deparar com dilemas morais.
É óbvio que a evolução da tecnologia nos oferece incontáveis benefícios para a organização e
funcionamento de nossas sociedades, entretanto devemos manter sempre em mente que essas
inovações auxiliam, mas não substituem o raciocínio humano e as avaliações éticas que são
necessárias ao nosso cotidiano.
A de�nição de que a vida humana importa mais do que bens materiais, de que a gravidade de
uma doença é motivo legítimo para que se adiante um paciente na �la de atendimentos médicos
ou de que a função de salvar vidas poderia justi�car o excesso de velocidade de um automóvel
são ponderações éticas que só os humanos são capazes de realizar.
As máquinas até podem ser programadas de acordo com algumas considerações éticas,
estabelecidas por seres humanos, todavia, as diferentes justi�cativas que um mesmo ato pode
ter – o excesso de velocidade mencionado, por exemplo – e a impossibilidade de se prever de
antemão todas as situações cotidianas que envolveriam um juízo ético apresentam limites para
a visão tecnicista de que a tecnologia fornece solução para todos os problemas humanos.
Esse posicionamento seguramente re�ete uma postura humanista que, em pleno exercício de
nossas liberdades, rejeitaria uma condução automatizada, mecanicista e – por que não? –
antiética de nossas vidas.
Aula 2
Por que discutir política?
Introdução da aula
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Qual é
,indica o valor necessário para que o salário mínimo
seja su�ciente para as necessidades básicas dos trabalhadores. Essa pesquisa aponta a
diferença entre o salário mínimo nominal (salário mínimo corrente) e o salário mínimo
necessário, calculado com base nesse montante ideal para acompanhar o custo de vida no
Brasil.
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Salário mínimo nominal e necessário. Fonte: adaptado de DIEESE.
Veja como em dezembro do último ano, 2018, esse salário mínimo necessário correspondeu a
cerca de quatro vezes o valor do salário mínimo corrente. Se comparamos o valor do salário
mínimo necessário deste mesmo ano com o valor do bolsa família R$ 195,00 (2018),
percebemos que seriam necessárias 20 bolsas famílias para manter a correspondência com o
custo de vida mínimo no Brasil!
______
Os dados apresentados, com base nas pesquisas do DIEESE, ajudam a entender a falta de
sustentação de boa parte das críticas ao programa, já que o montante máximo oferecido pelo
Bolsa Família �ca muito abaixo dos valores necessários para cobrir os custos de vida no país.
Isso mostra a impossibilidade de o conjunto de bene�ciários do programa simplesmente optar
pelo “luxo” de não trabalhar.
Além disso, também podemos nos fazer uma pergunta muito simples: como uma pessoa pode
trabalhar ou produzir se não tem o que comer ou o mínimo necessário para a sua sobrevivência?
O recebimento dessa renda, em geral, oferece mais condições às pessoas em situação
socioeconômica vulnerável de entrar para o mundo produtivo, seja por meio de um emprego, seja
por meio de uma produção própria ou até de uma fase preparatória de quali�cação/estudo.
Trata-se, portanto, de garantir o mínimo – ou, na verdade, menos do que o mínimo, se
considerarmos o custo de vida no país.
A questão central é sabermos em qual país gostaríamos de viver: em um país que assume a
miséria como natural ou em um que aplica políticas públicas e�cientes para combatê-la.
Lembremo-nos, portanto, de que a pobreza pode ser combatida. E é essencial que a sociedade
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pressione o poder público nessa direção. Do contrário, como já acenado, sem dúvida viveremos
em uma sociedade con�ituosa e violenta, que desperdiça seu potencial de desenvolvimento.
Conclusão
No Brasil, atualmente cerca de 13 milhões de pessoas passam fome, enquanto 41 mil toneladas
de alimentos são desperdiçadas por ano. Perguntamos inicialmente: como você enxerga esse
fenômeno? Ele está relacionado com o aumento da pobreza, é um problema individual ou social?
Quais recomendações você daria para o combate à fome no Brasil atual?
Antes de tudo, é necessário fazermos uma contextualização que possa nos situar a respeito da
questão da pobreza e da fome no Brasil de hoje. Vivemos atualmente no contexto de uma crise
que vem se con�gurando como uma das maiores da história do capitalismo. A dimensão
internacional da crise é de enorme relevância para uma investigação voltada a analisar
cienti�camente as características atuais da pobreza e da fome, bem como suas particularidades
em cada país, inclusive do Brasil.
Diversos estudos têm mostrado o aumento da pobreza em escala mundial – re�exo da
concentração de renda e riquezas – e sua acentuação após a eclosão da crise, que afeta
primeiramente os países do Norte Global e, mais tarde, com ainda mais intensidade, os países do
Sul Global, que ocupam uma posição de dependência e subordinação no mercado mundial.
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Questões problemáticas, que antes pareciam estar geogra�camente delimitadas aos países do
Sul Global – como a acentuação das desigualdades de renda; o aumento do número de pessoas
em situação de rua; o trabalho pobre (chamado working poor) e precário (precariado); o alto
índice de desemprego e de informalidade; a favelização; o endividamento; dentre outras –,
invadem o cotidiano das cidades, sobretudo das capitais, nos países do Norte global (BASSO,
2010).
Mesmo no país mais rico e potente do globo, conforme explica Mariana Fix, “a onda de despejos
que marcou a crise �nanceira mundial, iniciada em 2007, deixou bairros inteiros praticamente
abandonados nos EUA. Mais de 2 milhões de famílias foram despejadas em poucos anos e
outras saíram de suas casas por não conseguirem pagar as dívidas hipotecárias” (FIX, 2011, p.
1).
Essas mesmas tendências pareciam estar longe de poder chegar ao Brasil. No entanto, em 2014,
o impacto da crise econômica se fez igualmente agressivo e generalizado no país, re�etindo-se
claramente na estagnação, em 2014, e depois na queda brusca do Produto Interno Bruto (PIB),
em 2015 e 2016. Desde 2015, as medidas de austeridade aplicadas signi�caram uma queda de
83% no orçamento das políticas públicas para a área social no Brasil (INSTITUTO DE ESTUDOS
SOCIOECONÔMICOS apud OXFAM, 2017).
No atual contexto de crise econômica, esses cortes em programas sociais empurram com ainda
mais rapidez as famílias para a pobreza. Nesse contexto, fala-se de “novos pobres”, que são
produtos da crise, dos cortes em programas sociais e da grave situação de desemprego e
precarização do trabalho.
Depois dessa contextualização, tentaremos entender duas matrizes de discussão sobre a
miséria e a fome, para podermos também re�etir se esses fenômenos são um problema
individual ou social e quais seriam os caminhos para combatê-los.
A abordagem individualista inspira-se na teoria econômica liberal, que considera a liberdade do
indivíduo e do funcionamento do mercado como elementos explicativos fundantes dos
fenômenos sociais, inclusive da pobreza e da fome. A pobreza e as desigualdades são
consideradas naturais das sociedades e, em alguma medida, bené�cas ao próprio
funcionamento do mercado por fomentar a concorrência.
Por exemplo, segundo essa visão os operários recebem menos porque têm menos quali�cação e
são mais numerosos em relação à oferta reduzida de trabalhadores mais quali�cados. A melhor
forma de “equilibrar” a pobreza e as desigualdades é deixar o mercado funcionar livremente e
responsabilizar os indivíduos para que tomem iniciativas a �m de melhorar sua condição no
mercado.
A partir da visão individualista da pobreza, o único papel do Estado e da sociedade é buscar
políticas que fomentem o próprio mercado e, em decorrência, ofereçam oportunidades aos
indivíduos para que estes tomem individualmente iniciativas para agir na sua situação vulnerável.
Já a abordagem do Estado social baseia-se em teorias que ganham corpo nos chamados “anos
gloriosos”, após a Segunda Guerra Mundial. Elas abandonam o enfoque assistencialista de
intervenção do Estado para agir pontualmente e de forma paliativa nas desigualdades e situam o
Estado como uma entidade separada e que pode regular os desequilíbrios de matriz econômica,
como árbitro garantidor e promotor concomitantemente:
1. dos interesses de mercado e da liberdade “regulada” de ação de suas forças;
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Sociedade Brasileira e Cidadania
2. dos interesses sociais coletivos de seus membros e do bem-estar social mínimo.
Nessa visão, a pobreza e a fome não podem ser consideradas como um problema individual,
mas sim como um produto das relações sociais, portanto coletivo. Muitas reivindicações de
movimentos sociais partem desse raciocínio de que é função do Estado intervir no mercado para
corrigir injustiças sociais e possibilitar a superação da condição de desvantagem desses grupos
no sistema político e econômico.
Quais seriam, então, as formas de combater a pobreza e a desigualdade no Brasil? No Brasil, nós
nunca tivemos um Estado social forte. No entanto, sobretudo com a campanha de
nacionalização de Getúlio Vargas e, mais tarde, com a redemocratização do país, em 1988, foram
criadas importantes estruturas sociais, como o sistema de educação e de saúde pública. Há
também um histórico de programas sociais para agir contra a pobreza e a fome, que foram
tratados nesta aula.
A questão central é entendermos se o Estado deve se retirar de seu dever constitucional de
combate à pobreza e às desigualdades,
,como dita a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), ou se
deve manter e melhorar a estrutura de suporte social que já foi construída.
A tendência colocada no contexto neoliberal, que se acentuou com a atual crise, é que o Estado
faça cortes em orçamentos destinados ao social e também privatize seus bens, serviços e
ativos, sobretudo a partir da aplicação dos ajustes �scais, como se esses fossem o único
“remédio” para resolver os efeitos da crise. Todavia, essa via caminha ao lado, como já
problematizado nesta aula, de uma sociedade desigual e con�ituosa, que corre o risco de
naturalizar a pobreza, em vez de combatê-la.
Aula 3
Como combater nosso racismo?
Introdução da aula
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Qual é o foco da aula?
Nesta aula, você irá se dedicar à discussão do racismo, das desigualdades raciais e das
respostas que a sociedade brasileira tem proposto para atuar nesses problemas.
Objetivos gerais de aprendizagem
Ao longo desta aula, você irá:
descrever a diferença e a hierarquia entre as “raças” branca, negra e amarela do gênero
humano.;
analisar os fatos históricos do regime de escravidão;
constratar a transformação dos movimentos indígenas e negros.
Situação-problema
No Brasil, presenciamos inúmeros casos graves de racismo. Os assassinatos constantes de
jovens negros são certamente o exemplo mais explícito dessa gravidade. Basta lembrarmos do
brutal assassinato, em 2018, da vereadora negra da cidade do Rio de Janeiro, defensora dos
direitos da população negra, Marielle Franco.
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Sociedade Brasileira e Cidadania
A indiferença reina, segundo a pesquisa da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR) e do Senado Federal, que evidencia que 56% da população brasileira
considera que “a morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte de
um jovem branco” (ONUBR, [2017?]).
Na atualidade, o fato de o racismo ser considerado um crime no Brasil, com penalidades
previstas em lei, parece não mais intimidar os ímpetos racistas latentes em nossa sociedade. As
redes sociais certamente são os lugares em que esse temor se desfaz com menos pudor, mas,
para além das telas, a realidade no Brasil também tem sido permeada de duras manifestações
racistas por meio de xingamentos, humilhações de todo tipo, pichações, violência psicológica e
física contra os negros e outros grupos vitimados por esse fenômeno.
É claro que o negro não é a única vítima do racismo. Poderíamos perguntar, por exemplo, a um
brasileiro que já morou fora do Brasil, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, se ele já sentiu
na pele o que é o racismo, às vezes mesmo sendo branco. Poderíamos perguntar para os
imigrantes e refugiados de diferentes nacionalidades – não brancos ou de fé religiosa não cristã
– se são tratados, inclusive legalmente, em posição de igualdade com os brasileiros e o que isso
signi�ca em suas vidas.
No entanto, poderíamos também alargar o nosso olhar para as nossas diversidades originárias,
ou seja, nossos povos indígenas. Para esses povos, segundo o relatório da Comissão da
Verdade, “o século XX se caracterizou como um dos mais violentos da história desde 1500”
(BRIGHENTI, 2016, p. 240).
O que dizer então de nossos dias? Diversas reportagens de jornais trazem declarações que
parecem estimular a violência contra os indígenas e, sobretudo, a espoliação de suas terras
(CUNHA, 2019). O Relatório Violência contra os Povos Indígenas, de 2016, con�rma que houve
um aumento de diferentes tipos de violência contra essa população em comparação com 2015
(CIMI, [2017?]). A verdade é que crimes desumanos continuam a acontecer, em especial contra
as lideranças indígenas.
A�nal, há alguma diferença entre as características de atuação do racismo hoje e as do
passado? É possível pensar em medidas e práticas para reduzir ou até mesmo acabar com o
racismo no Brasil? Você está convidado a pensar nesse tema, que é central para o conhecimento
da sociedade brasileira.
Estrutura racializada da sociedade brasileira
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Muitas discussões são feitas no Brasil sobre como combater o racismo aqui imperante.
Lembramos que racismo pressupõe diferença e hierarquia entre as “raças” branca, negra e
amarela do gênero humano. Um requisito básico para enfrentarmos essa questão é nos
basearmos na formação histórica desse fenômeno e sua imbricação com as desigualdades
produzidas e reproduzidas no país.
A estrutura racializada da sociedade brasileira tem suas raízes no sistema colonial, em particular
na escravidão que vigorou por quase quatro séculos no Brasil. Isso signi�ca que as raízes
históricas do racismo são antigas e profundas. Todavia, é igualmente importante entendermos
que o racismo não é algo natural, que deve ser considerado uma “essência” imutável do
funcionamento da sociedade brasileira e de sua mentalidade predominante. Pelo contrário, o
racismo foi construído historicamente por relações sociais, e da mesma forma que se reproduz
no tempo, também pode ser combatido e, quem sabe, eliminado.
A relação dos colonos portugueses com os indígenas é o primeiro terreno histórico para
pensarmos a estruturação do racismo no Brasil. Essa relação, longe de assumir uma base
igualitária, apoiou-se na construção das diferenças e hierarquias demarcadas em relação aos
costumes, culturas, línguas, religiosidades dos nossos povos originários. A concepção
hegemônica da história do Brasil, como se apenas tivesse começado depois da “descoberta”
pelos portugueses – já que, aqui, habitavam povos “sem história” e “sem cultura” – é exemplo
claro dessas hierarquias estabelecidas.
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No início do sistema colonial, o racismo assumiu características religiosas. Na Junta de
Valladolid (1550/51), pela primeira vez se discutiu a questão da natureza – cristã ou não – dos
indígenas das Américas, portanto, também de qual política colonial adotar em face deles.
Embora os nativos não tenham sido considerados nem hereges nem pagãos, mas povos gentis –
cristãos por natureza, que deveriam ser convertidos à fé cristã –, não foram reconhecidos como
sujeitos em condição de igualdade com os portugueses. Além disso, a população nativa não foi
nem um pouco poupada de tentativas de recrutamento para o trabalho forçado, de muitos outros
tipos de violência – inclusive de abuso sexual e estupro das indígenas – nem de massacres
continuados, para não dizer de tentativas de extermínio que certamente perduram até hoje – não
sem a resistência contínua desses povos, é claro (LEWIS, 2019).
______
Assimile
O genocídio dos povos indígenas na América Latina e no Brasil já foi documentado por muitos
estudos. No entanto, é importante atentarmos ao que Souza e Wittman (2016) colocam em
evidência. Os autores chamam atenção ao fato de que essas populações estão vivas e presentes
no território nacional, sendo também detentoras de direitos, como todos os brasileiros. Nesse
sentido, destacam:
"[...] a falácia do discurso de que os povos indígenas estavam extintos ou em vias de
se extinguir por completo, o que legitimaria o espólio de terras. A ideia do
desaparecimento por meio da mestiçagem serve até hoje para o avanço sobre terras
indígenas, sob a justi�cativa de que os índios não podem mais ser assim
reconhecidos porque mudaram. A transformação, porém, é inerente às relações
humanas. O que esta história demonstra é, mais do que a presença, uma agência
indígena na defesa de seus territórios coletivos.” (SOUZA; WITTMAN, 2016, p. 20)
______
Os sistemas de tutela e de reserva de terras, instituições jurídicas nas quais, respectivamente, o
indígena foi considerado um menor de idade que devia ser tutelado pelo Estado e devia se
contentar com um espaço reduzido de sua própria terra nativa, delimitado pela administração
colonial, foram utilizados para “apaziguar” as relações dos portugueses com os indígenas
sobreviventes.
Esse sistema provocou o isolamento dessa população, o que, até hoje, é motivo de debates
muito vivos sobre como
,“integrar” essa “alteridade” que, a todos efeitos, é a autêntica população
brasileira. Sabemos bem que essa população foi excluída da participação das dimensões mais
variadas da sociedade brasileira, como o sistema educacional, político, de saúde, o mercado de
trabalho, dentre tantas outras.
A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) assegura aos nossos povos originários o direito à
terra e reconhece suas organizações, costumes, tradições e crenças. As terras indígenas
representam, além de um direito, uma garantia de sobrevivência física e cultural dessa
população. É por esse motivo que a efetivação desse direito já reconhecido, ou seja, a
demarcação de terra, continua sendo a principal reivindicação dos povos indígenas no Brasil, que
lutam também contra as invasões de suas terras, a pobreza e as violações de seus direitos.
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Não devemos nos esquecer de que essas terras concentram a maior reserva de biodiversidade
do país, além de minerais diversos, por isso são alvo de ambições desmedidas. Estereótipos do
tipo “índio tem muita terra”, “índio deveria trabalhar para comprar suas terras”, “índio é
preguiçoso”, que reforçam a ideia do “primitivo”, da “peça de museu”, continuam funcionando
como um poderoso argumento para justi�car a expropriação dessa população e privá-la de um
direito originário.
Fatos históricos
Paralelamente, o regime de escravidão, base da economia agrária de exportação colonial, foi
outro importante fator histórico estruturante do racismo na nossa sociedade. O historiador Luiz
Felipe de Alencastro (2000) fez um estudo de referência para entendermos o que ele chama de
“trato dos viventes” e sua importância para formação econômica e cultural do Brasil,
evidenciando como a escravidão penetrou nas dimensões mais íntimas do funcionamento da
sociedade e do Estado.
Conforme explica, o país foi o principal importador de escravos das Américas, ou seja, fez
funcionar por séculos a migração forçada de cerca de 5 milhões de africanos! Isso comprova
como o sistema racista – o�cialmente legalizado no período da escravidão, ao colocar os negros
em uma condição de objeto que podia ser comprado e vendido, além de poder ser utilizado à
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mercê dos caprichos de seu proprietário – representava uma estrutura econômica altamente
lucrativa e difícil de ser eliminada da mentalidade dos proprietários de escravos e do
funcionamento do Estado brasileiro.
Por esse motivo, o historiador dá destaque ao fato de que, mesmo após o trá�co negreiro ser
declarado ilegal pela Inglaterra, no início do século XIX, o Brasil simplesmente ignorou essa lei e
continuou importando e escravizando os negros que aqui chegavam. O historiador também
relata a violência, os açoites, punições utilizadas contra os negros que se revoltavam contra esse
sistema já declarado ilegal.
A luta dos escravos e libertos teve papel determinante para o �m da escravidão por meio de
diversas formas de resistência nas senzalas, fugas das fazendas, auto-organização dos
quilombos, mesmo sob o controle extremo do senhor e do aparato repressivo do Estado. O
historiador Clóvis Moura (1925-2003) destacou que
“enquanto o escravismo brasileiro era uma instituição sólida e reconhecida, somente
os escravos lutaram radicalmente para extingui-lo” (MOURA, 2014, p. 56).
A questão central é que a sociedade moderna brasileira foi formada com base nessa estrutura
racializada, que não reconhecia que negros e indígenas tivessem a mesma natureza humana de
todos, tampouco seus direitos civis e religiosos. Os estudos do historiador Charles Boxer (1904-
2000) também dão destaque ao “sentimento de superioridade racial” dos portugueses e sua
intrínseca relação com o pioneirismo de Portugal no comércio escravagista e na exploração
sistemática do trabalho dos negros por mais de três séculos (BOXER, 1981, p. 254).
Para Boxer, o Império Português, em todas as suas colônias, foi estruturado por meio de
“barreiras raciais”. A prática da discriminação racial era onipresente e se justi�cava
ideologicamente pela associação entre “pureza da alma” e “brancura da pele”, colocando os
portugueses na posição de proprietários e detentores do poder político, ao passo que os negros
e indígenas eram considerados unicamente como objetos de exploração e dominação. Boxer
ressalta também que mesmo os mulatos, de “sangue misturado”, sempre ocuparam um lugar
rebaixado na sociedade colonial portuguesa por causa da cor da pele (BOXER, 1967, p. 104).
A questão racial se complexi�ca quando, em 1888, é abolida a escravidão e, em 1889, é
inaugurado o regime republicano, que reconhece a igualdade formal de direitos entre negros e
brancos. A partir de então, o racismo deixa de ser legalizado. Florestan Fernandes é um autor
essencial para entendermos o signi�cado contraditório dessa transformação, ao mostrar que, ao
mesmo tempo em que o reconhecimento formal de direitos dos negros passa a ser uma arma de
combate ao racismo, contraditoriamente, também serve como fator ideológico para justi�car a
sua reprodução.
Isso porque a igualdade formal de direito tem como contrapartida tornar o racismo “mais
insidioso” e camu�ado uma vez que pressupõe que o negro, mesmo tendo sofrido um sistema
secular de exploração e opressão, parte de bases iguais para competir na sociedade de classes,
ou seja, é como se esse grupo social estivesse em condições de igualdade com o branco para
competir por uma vaga de trabalho, para entrar e se manter no sistema escolar, entre outros
fatores.
A fotogra�a social fornecida na sua obra sobre a situação do negro e do mulato no momento
sucessivo à abolição mostra que a “liberdade e igualdade [formal de direitos] continuariam
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modeladas e bloqueadas pela “concentração racial de renda, do prestígio social e do poder”, ou
seja, continuavam impedidas de serem “fruídas socialmente” (FERNANDES, 2008, p. 118 e 140).
A partir de uma pesquisa empírica realizada nos anos 1950 na cidade de São Paulo, para avaliar
a integração do negro nessa cidade com alta concentração de imigrantes brancos europeus, o
autor denuncia as desvantagens do negro para competir, que re�etem a continuidade da
estruturação da sociedade brasileira na discriminação racial e nas desigualdades raciais.
É por esse motivo que Florestan Fernandes critica veementemente o que ele chama de “mito da
democracia racial”, bastante arraigado na nossa sociedade, por construir a ideia de que o Brasil,
diferentemente de outras sociedades, é menos preconceituoso, mais aberto à miscigenação de
raças e culturas.
Na opinião de Fernandes, essa ideia, defendida por Gilberto Freyre (1900-1987) como uma
herança positiva do colonialismo português (FREYRE, 1958), é retrato, na verdade, de uma
sociedade que aparenta “ter preconceitos de ter preconceito”, porém rati�ca as desigualdades
raciais criando “um consenso de que certas posições [de maior renda, prestígio social e poder]
pertencem ao branco” (FERNANDES, 2008, p. 309 e 437).
______
� Pesquise mais
Sugerimos que você assista ao vídeo O genocídio do negro brasileiro em suas diversas formas
produzido pela Editora Perspectiva sobre o livro do escritor e Professor Abdias do Nascimento
(1914-2011), O genocídio do negro brasileiro em suas diversas formas (1978). Perceba como o
genocídio não remete apenas à sua dimensão concreta, de extermínio físico da população negra,
mas também à simbólica, relativa à psique, à identidade do negro, que sofre diversos tipos de
violência cotidiana em uma sociedade racista.
Políticas de ação a�rmativa
https://www.youtube.com/watch?v=-N7c_xGY3Sk
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A pesquisa empírica de Fernandes para avaliar a integração do negro resultou em seu livro A
integração do negro na sociedade de classes (1964) e foi atualizada, mais tarde, por diversos
estudiosos do racismo (SILVA, 2017; IPEA, 2007; HASENBALG, 2005). Não faltam estatísticas
para comprovar as desvantagens que os afrodescendentes
,enfrentam na estrutura de emprego,
quali�cação educacional, distribuição de renda e riqueza, entre outras dimensões da sociedade
brasileira.
As políticas de ação a�rmativa são destinadas a agir nesse quadro de desigualdades raciais e de
reprodução de injustiças sociais. Moehlecke (2002) nos explica que as ações a�rmativas surgem
nos EUA, na década de 1960, em decorrência das reivindicações dos movimentos dos direitos
civis – sobretudo impulsionados pelos movimentos negros – para promoção da igualdade de
oportunidades.
Essas políticas também foram implantadas em diversos países do mundo com o intuito de
combater a discriminação e as desigualdades contra grupos historicamente excluídos ou
aqueles que nas estatísticas têm grande possibilidade de o serem. Além dos negros, essas
políticas contemplam as mulheres e as minorias étnicas, religiosas, linguísticas, nacionais.
O foco dessas ações é principalmente o mercado de trabalho, o sistema educacional (sobretudo
o ensino superior), a promoção de funcionários, a representação política e nos meios de
comunicação, a incorporação do quesito cor nos sistemas de informação. Conforme destaca a
autora, no Brasil, essas políticas começam a ser discutidas nos anos 1980, passam a ser
aplicadas timidamente nos anos 1990 e com mais sistematicidade nos anos 2000.
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A política das cotas raciais no ensino superior acabou ganhando mais destaque por causar
polêmicas acirradas, sobretudo no que se refere ao argumento da “quebra” do princípio da
igualdade protegido pela Constituição e de supostos “privilégios” conferidos aos bene�ciários
das cotas. Esses e outros argumentos foram totalmente desconstruídos, empírica e
teoricamente, não apenas por estudos cientí�cos, mas também pelo próprio Supremo Tribunal
Federal (STF), que declarou a constitucionalidade dessa política.
Na ocasião em que foi discutida a constitucionalidade das cotas neste Órgão, foi convocada
uma audiência pública na qual diversos intelectuais e especialistas no tema racial, a favor e
contra as cotas, foram chamados para se pronunciar. Vejam o que o historiador Alencastro disse
no seu pronunciamento:
“Os ensinamentos do passado ajudam a situar o atual julgamento sobre cotas
universitárias na perspectiva da construção da nação e do sistema político do nosso
país. Nascidas no século XIX a partir da impunidade garantida aos proprietários de
indivíduos ilegalmente escravizados, da violência e das torturas in�igidas aos
escravos e da infracidadania reservada aos libertos, as arbitrariedades engendradas
pelo escravismo submergiram o país inteiro. Por isso, agindo em sentido inverso, a
redução das discriminações que ainda pesam sobre os afro-brasileiros, hoje
majoritários no seio da população, consolidará nossa democracia.” (ALENCASTRO,
2012, p. 37-38)
______
Exempli�cando
O papel do movimento pró-cotas é provocar o poder público a agir nas desigualdades raciais
seculares no Brasil. As discussões que surgiram em torno da implantação da política de cotas
nas universidades públicas no Brasil, para o acesso e a permanência estudantil de negros e
indígenas, explicitaram a atuação do racismo aqui:
“Se, por um lado, existe esse tipo de reação favorável, por outro, se disseminam
posições de repúdio às cotas de forma discriminatória e, na maioria das vezes, ilegal.
Serve de exemplo a notícia publicada no Portal G1, dando conta de que “Cotas raciais
viram assunto de polícia no Rio Grande do Sul” (Portal G1, 2007a), fazendo referência
às pichações feitas no muro próximo à faculdade de direito da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul com a frase “Negros só se for na cozinha do RU (restaurante
universitário)” (sic).” (PEREIRA, 2008, p. 176)
______
Além dos inúmeros dados estatísticos que explicitam a discriminação contra os
afrodescendentes e indígenas e a persistência da diferença de anos de escolarização entre
brancos e esses grupos no Brasil, um rico debate sobre o signi�cado da democracia, dos
princípios de justiça social, de defesa da diversidade e de reparação histórica foi mobilizado para
mostrar para a sociedade a legitimidade – e sobretudo, a necessidade – das políticas de cotas
(JR. FERES; DAFLON; CAMPOS, 2012).
Na prática, trata-se de aplicar o
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“binômio distribuição-reconhecimento” (SILVÉRIO, 2012, p. 22) e “tratar de maneira
desigual um problema gerado por uma situação desigual” (ALENCASTRO, 2012, p.
30).
Hoje, essa política foi implementada por diversas instituições de ensino superior no Brasil,
públicas e privadas, nos concursos públicos, no mercado de trabalho (ZONINSEIN; FERES, 2008),
porém ainda há muito a ser feito.
______
Re�ita
Con�ra as principais motivações que sustentam as políticas de cotas raciais, na visão de
Carvalho (2005). Conforme destaca o autor, as cotas raciais abrangem um campo mais amplo de
lutas antirracistas no Brasil.
“Poderia sintetizar as quatro motivações principais para justi�car a legitimidade e a
urgência das cotas nas universidades. O primeiro argumento seria a representação:
após mais de 300 anos de escravidão, a comunidade negra exige uma compensação
inequívoca pela tragédia da escravidão.Garantir o acesso ao ensino superior, pelo
menos para um pequeno contingente de descendentes de africanos escravizados no
Brasil, é uma das tantas formas possíveis de reparação. Um segundo motivo para as
cotas seria a cobrança de um direito, mesmo depois de abolida a escravidão.A
Constituição da República de 1988 assegurava um tratamento igual a todos os
cidadãos, no que diz respeito aos serviços públicos oferecidos pelo Estado, entre
eles, o acesso ao ensino gratuito. Após mais de um século de república, a
desigualdade de participação no ensino superior da comunidade negra é escandalosa
e, sob este ponto de vista, as cotas garantem um direito mínimo de participação.Um
terceiro argumento diz respeito especi�camente à dinâmica da instituição
universitária: a presença de negros e índios enriquecerá a produção de saberes e
forçará uma revisão do eurocentrismo subalternizante e absoluto que marca a vida
universitária brasileira. Contudo, há uma quarta motivação para as cotas que
considero de maior relevância: a intensi�cação da luta antirracista no Brasil. Propor
as cotas é abrir a discussão até agora silenciada, sobre a sociedade racista em que
vivemos.” (CARVALHO, 2005, p. 110)
Ensino de história da África e dos povos indígenas
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O combate ao eurocentrismo e o ensino de história da África e dos povos indígenas também se
inserem nessa frente de combate ao racismo no Brasil, voltada a agir no campo da educação, em
especial nos currículos escolares e nas instituições de ensino.
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Leis referentes ao ensino da Cultura Afro-Brasileira e indígena. Fonte: Elaborado pelo autor.
______
Assimile
A Lei n. 11. 645/2008 (BRASIL, 2008) modi�cou o art. 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (1996), conforme indicado a seguir:
“Art. 26-A: Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos
e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e
indígena.
Paragrafo 1º - O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da
África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura
negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional,
resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes
à história do Brasil.
Paragrafo - 2º - Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar,
em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.”
(BRASIL, 2008, [s.p.])
______
,A instituição dessas legislações não se deu sem crítica, sobretudo ligadas à falta de efetividade
na implementação dessa política, e também acompanhou um rico debate sobre o
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reconhecimento da diversidade dos povos indígenas e africanos e sobre a necessidade da
construção de uma nova narrativa da história do Brasil, desvinculada dos parâmetros
hegemônicos eurocêntricos – que consideram a cultura europeia ocidental como superior,
portanto, a ser assimilada por todas civilizações do mundo em detrimento de suas próprias
culturas.
Ao contrário, discute-se a necessidade de se colocar os saberes dessas populações no mesmo
patamar de importância dos saberes hegemônicos do Ocidente. Para tanto, estabeleceu-se a
implementação de um novo currículo escolar que contemplasse o combate aos estereótipos, às
misti�cações funcionais, à discriminação e à exploração dessas populações e o estudo da
atuação dessas populações como sujeitos e protagonistas de sua própria história foram.
Conforme explica Carvalho (2005),
“Evidentemente, carregamos ainda uma carga muito forte de eurocentrismo, dado
que todo esse modelo de academia exclusivista foi gerado pelo mundo europeu
[Ocidental], que se via como hom*ogêneo etnicamente. Dito em termos antropológicos
mais soltos, havia uma etnia dominante, tanto na Europa Central, como na Inglaterra e
na França: os brancos.As minorias de outras línguas que não as línguas coloniais,
estavam fora desse jogo político e acadêmico. Tratava-se, na verdade, de um mundo
branco ocidental que funcionava como se não tivesse fraturas internas de visão de
mundo, que se auto proclamava universal.Todavia, quando transladamos essa
con�guração sócio-racial para o nosso mundo, fomos forçados a pagar um preço
muito alto em termos de silenciamento, de censura, de repressão de outras visões de
mundo, porque nós não estamos nesse espaço austríaco, prussiano, britânico,
parisiense.Existem pelo menos 180 línguas indígenas faladas hoje no Brasil, daí que
pelo menos a nossa Extensão deveria manter-se conectada com a parte não-
eurocêntrica da nossa sociedade. Deve ser o lugar onde se faz o esforço de
incorporar saberes não europeus que foram de�nidos por nós, brancos, como não
acadêmicos.” (CARVALHO, 2005, p. 146)
Santos e Meneses (2010) também denunciaram a violência epistemológica ocidental ligada ao
exercício do poder colonial, da economia capitalista e do processo de expansão da cultura
ocidental. A construção de epistemologias dominantes, para os autores, implica o
“epistemicídio”, ou seja, a supressão da diversidade de culturas e saberes dos povos submetidos
à dominação pelo ocidente hegemônico.
Para desconstruir essa narrativa histórica contada a partir do ponto de vista dos dominantes, há
um esforço sendo feito de reconstrução da história dos países colonizados a partir da
perspectiva dos colonizados, dos sujeitos subalternos e suas lutas, com destaque ao seu papel
ativo como protagonistas dessa história. Hoje, a nossa historiogra�a possui um arsenal de
estudos nessa linha, que embora ainda tenha muitas lacunas a serem preenchidas, permite que
outra narrativa histórica, comprometida com os saberes indígenas e africanos, seja ensinada nas
escolas e universidades (SILVA; SOUZA, 2016).
Movimentos de resistência
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Como a reconstrução dessa narrativa não alude apenas ao passado, mas também à história
presente desses grupos sociais, é imprescindível conhecermos as reivindicações e frentes de
resistência e transformação dos movimentos indígenas e negros. Esses movimentos bebem das
fontes de resistência do passado. A década de 1970 é um marco para entendermos o
crescimento desses movimentos em nível nacional.
No que se refere ao movimento indígena, há diversas organizações espalhadas pelo país que
também se articulam em nível regional e nacional. Para Matos (2006), esses movimentos
contribuíram para a construção de uma “nova imagem social de índio reconhecido como sujeito
político da sociedade civil brasileira” (MATOS, 2006, p. 40).
A autora ainda destaca a complexidade desses movimentos, que abrangem desde ações
coletivas e enfrentamentos diretos pelos indígenas a esferas de institucionalização de
representação política, no formato de organizações não governamentais (ONGs), partidos
políticos e gestão administrativa nas instituições. Diversos líderes indígenas ganharam destaque
no país, mas sabemos que eles também são alvo privilegiado de assassinatos.
Conforme Matos (2006), esses líderes assumem o papel de articuladores, gestores,
representantes políticos em esferas públicas, sobretudo de “tradutores políticos”, por fazerem
“a mediação das relações interétnicas entre as populações indígenas e a sociedade e
o Estado nacionais, antes efetuada, principalmente, por indigenistas do órgão
governamental (SPI, FUNAI) e indigenistas de organizações não governamentais de
apoio aos direitos indígenas” (MATOS, 2006, p. 217)
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Os movimentos negros também assumem um papel de enorme relevância na sociedade
brasileira. A resistência secular à escravidão – na forma política, cultural e religiosa – é central
para combater o racismo no Brasil. Desde as primeiras décadas do século XX, esses
movimentos tinham uma expressão signi�cativa na imprensa, literatura e construíam diversas
organizações com diferentes pautas de atuação: a�rmação da identidade negra; presença no
poder político, ampliação da visibilidade do negro, dentre outras.
O Movimento Negro Uni�cado, fundado em 1978, é um exemplo do grau complexo de
organização e representação que esses movimentos assumiram no Brasil. Esses movimentos
atuam nas cidades, nas suas periferias e também no mundo rural, onde há a população
quilombola. É importante destacar o protagonismo das mulheres negras nesses movimentos,
que também assumem pautas dando destaque à opressão de gênero da mulher negra.
A atuação desse movimento foi determinante para a implantação das políticas de cotas raciais
no país, anteriormente discutidas, além de outras frentes de combate ao racismo. Analistas
iluminam o processo de institucionalização e participação no poder público desses movimentos,
conquistado após a redemocratização do país (1988), em particular no início do século XXI
(RIOS, 2008).
É importante lembrarmos que essas conquistas podem sofrer retrocessos. O momento atual que
estamos vivendo, no Brasil e no mundo, descrito pelo sociólogo italiano Pietro Basso como de
“agudização do racismo” (BASSO, 2015), coloca desa�os enormes para esses movimentos e para
todos os setores da sociedade empenhados em combater esse fenômeno e seus efeitos
nefastos.
Conclusão
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No Brasil, presenciamos inúmeros casos graves de racismo, com assassinatos constantes de
jovens negros e da população indígena, em particular de suas lideranças. Embora o racismo seja
crime no Brasil, com penalidades previstas em lei, isso parece não mais intimidar os ímpetos
racistas latentes em nossa sociedade, que se explicitam sobretudo nas redes sociais, mas
também na vida real cotidiana da sociedade – com os xingamentos, humilhações de todo tipo,
pichações, violência psicológica e física contra os grupos sociais vítimas desse fenômeno.
A�nal, há alguma diferença entre as características de atuação do racismo de hoje e as do
passado? Não é possível entender as manifestações de racismo em nossa sociedade sem a
compreensão das raízes históricas profundas, ligadas ao funcionamento do sistema colonial e
da escravidão no Brasil. O olhar de longo prazo para a nossa história ilumina o quão enraizado
esse fenômeno está na sociedade brasileira.
A estrutura racializada, durante muitos séculos, tinha respaldo em leis. Apenas em 1888, com a
abolição da escravidão, e em 1889, com a Proclamação da República, a igualdade formal do
branco e do negro foi instituída. Aos indígenas, foi reservado um sistema de tutela, que os
privava da igualdade de direitos civis.
,Essa estrutura racializada, e toda a violência racista nela
implicada, reproduziu-se de diferentes formas.
Não faltam estatísticas para comprovar a exclusão e a exploração do negro e dos indígenas do
funcionamento de diferentes dimensões da sociedade brasileira, do mercado de trabalho, do
sistema educativo, de saúde, do acesso à moradia e ao poder político.
Todavia, de forma alguma devemos considerar essa situação como natural ou imutável de nossa
sociedade. Da mesma forma que o racismo é historicamente construído por relações sociais, ele
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também pode ser combatido e, quem sabe, também eliminado. Para isso, é necessário o
combate da dimensão material (estrutural) e também cultural e ideológica do racismo. Conforme
explicam Ferrero e Perocco (2011):
“O racismo é uma relação social de opressão e de exploração que compreende um
complexo ideológico que naturaliza as relações desiguais e que justi�ca a
subordinação de um grupo social por um outro. Uma relação material de dominação
que atinge particularmente as classes subalternas (ou parte delas) e que é parte
integrante dos processos de produção e reprodução das desigualdades sociais
[...].Filho primogênito do colonialismo, o racismo é um fenômeno congênito,
estrutural, generalizado da sociedade moderna. É verdade que nas sociedades pré-
modernas existiam “situações” parecidas com o racismo, isto é, realidades sociais
caracterizadas por uma ligação entre uma posição social subordinada e uma forma
de atribuição (física ou metafísica) conferida pelos grupos dominantes às populações
dominadas (escravos, estrangeiros, servos da gleba), porém essas “situações” não
apresentavam nem um complexo ideológico racista de caráter sistemático (ou seja
uma ideologia racista completa e integralmente combinada com o funcionamento do
sistema social) nem uma centralidade estrutural do fator “raça” no sistema de
organização social.” (FERRERO; PEROCCO, 2011, p. 9)
A resistência dos nossos povos indígenas e negros foi transversal à história do Brasil. Os
movimentos sociais e indígenas, além daqueles de outras minorias étnicas – como os
imigrantes e refugiados –, ainda têm uma atuação bastante presente e signi�cativa no Brasil,
empreendendo diversas frentes de luta, de denúncia e combate ao racismo, que já tiveram
resultados importantes na sociedade brasileira, como a política de cotas, o aumento da
representação desses grupos nas instituições públicas e privadas, o aumento da visibilidade nos
meios de comunicação e em outros âmbitos, a implantação do quesito cor nos sistemas de
informação.
Entretanto, também é verdade que o momento atual coloca desa�os redobrados para esses
movimentos e para todos os setores da sociedade que repudiam e combatem o racismo. O
sociólogo italiano Pietro Basso explica o momento atual como expressão da “agudização” e
“ascensão” do racismo, que mantém fortes continuidades com as raízes coloniais desse
fenômeno. Consideramos que essa perspectiva também é válida para analisarmos o nosso
contexto de “ascensão” do racismo e, concomitantemente, as estratégias das lutas antirracistas.
Basso evidencia como o racismo é central para entendermos o funcionamento das sociedades
modernas e na opinião do sociólogo, não há, portanto, uma ruptura com a forma de agir desse
fenômeno no passado. Pelo contrário, o movimento de “agudização” e “ascensão” do racismo
evidencia como esse fenômeno pode voltar a ser um elemento explícito e legalizado na
sociedade, como ocorria na época de funcionamento dos sistemas coloniais.
Por esse motivo, Basso utiliza o conceito de “racismo de Estado” (2010) para se referir ao que
está acontecendo nos países ricos (Europa, Estados Unidos), em particular contra os imigrantes
e refugiados dos países pobres, em sua maioria não brancos. Para o autor, nesses países, o
racismo adquiriu “um caráter explicitamente institucional” (nas leis e atos administrativos,
procedimentos burocráticos, entre outros), como uma marca declarada desses Estados, à
semelhança dos velhos tempos do colonialismo.
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Essa atuação racista dos Estados implica uma estrati�cação e hierarquização do mundo social
que é funcional ao sistema econômico vigente. Mas, o sociólogo também nos lembra que um
movimento contrário a essa tendência, de luta contra o racismo, também está ativo nessas
sociedades e ganha adesão da população desses lugares.
As frentes de combate ao racismo devem ter em mente as diferentes esferas de sua atuação –
institucional, cultural, econômica e política. As políticas de ação a�rmativa são destinadas a agir
no quadro de desigualdades e discriminação raciais e de reprodução de injustiças sociais.
O foco dessas ações é principalmente o mercado de trabalho para melhora no acesso aos
postos de trabalho; o sistema educacional (sobretudo o ensino superior) para promover a
quali�cação das populações discriminadas; o incentivo para empresas fomentarem a
diversidade; a representação política e nos meios de comunicação; o questionamento do lugar
das populações discriminadas nos meios de comunicação para evitar a reprodução de
estereótipos; a incorporação do quesito cor nos sistemas de informação para que políticas
públicas de combate à discriminação possam ser aplicadas com mais e�cácia.
Com esse �m, a política de cotas, por exemplo, foi implementada por diversas instituições de
ensino superior no Brasil, públicas e privadas, nos concursos públicos, no mercado de trabalho,
porém ainda há muito a ser feito, tendo em vista a necessidade de diversas frentes para
promover o reconhecimento da diversidade e o combate ao racismo no Brasil.
O combate ao eurocentrismo e o ensino de história da África e dos povos indígenas também se
insere nessa frente de enfrentamento do racismo no Brasil. Busca-se o reconhecimento da
diversidade dos povos indígenas e africanos, do seu protagonismo na história do Brasil e do
valor de seus saberes à cultura hegemônica ocidental.
Não podemos esquecer também que o racismo é considerado crime no Brasil. Portanto, a
punição efetiva desse crime também é uma frente de combate ao racismo que o Estado e a
sociedade devem reconhecer. Por �m, é imprescindível conhecermos as reivindicações e frentes
de ação dos movimentos indígenas e negros para entendermos o combate ao racismo no Brasil.
Videoaula: dilemas éticos da sociedade brasileira
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Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
,
Unidade 4
Pluralidade e diversidade no século XXI
Aula 1
Toda democracia é plural?
Introdução da unidade
Objetivos da Unidade
Ao longo desta Unidade, você irá:
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
esclarecer os elementos essenciais para o regime democrático;
ilustrar o conceito de gênero e sua in�uência na sociedade;
investigar a onda de fanatismo na sociedade brasileira.
Introdução da Unidade
Poucos tópicos de nosso estudo sobre sociedade brasileira e cidadania tendem a apresentar
discussões mais sensíveis do que os temas que nos esperam nesta unidade: a pluralidade e a
diversidade em pleno século XXI.
Isso porque, via de regra, lidar com realidades, dinâmicas ou problemas estranhos a nosso
cotidiano – processos incontornáveis quando tratamos das mais variadas formas de pluralidade
no Brasil contemporâneo – requer o esforço mental de imaginar situações possivelmente
desconhecidas e de forçar o exercício da alteridade, isto é, de reconhecer a existência do outro e
respeitar suas características e sua forma de vida, em um processo que pode ampliar nossa
tolerância ou, em sentido inverso, elevar nosso desconforto ao sairmos de nossos espaços
tradicionais.
Se é verdade que os avanços tecnológicos mais recentes podem expandir padrões de vida ao
redor do globo com maior facilidade, as reações naturais a essa uniformização tendem a
ressaltar diferenças, que também serão divulgadas com mais profusão nos meios tecnológicos.
Os processos de padronização e diferenciação encontram-se, curiosamente, intensi�cados nos
dois sentidos.
Diante desse quadro, se queremos compreender alguns dos elementos fundamentais para uma
abordagem crítica dos dilemas éticos e políticos atuais, com o objetivo de fortalecer nossa
participação cidadã na sociedade brasileira contemporânea, devemos re�etir a respeito de
questões importantes, como a relação entre a democracia e a pluralidade, levando em conta toda
uma série de conceitos especí�cos desses campos de estudo.
Também, para assegurar o aspecto humanista de nossa formação, precisamos nos atualizar
sobre as novas formas de a�rmação das identidades contemporâneas; abordando, igualmente, a
retomada de movimentos tradicionalistas e avessos a essas novidades.
Assim, deveremos nos perguntar se essa tolerância de que falamos é mesmo necessária. Se
vivemos em um mundo mais receptivo ou mais fechado a novidades do que em tempos
passados. O transcorrer do tempo traz consigo, automaticamente, mais liberdades e uma maior
aceitação das diferenças? Ou essa pluralidade pode ser reduzida conforme os dias passam,
exigindo um esforço especí�co para sua manutenção? Além disso, essa diversidade seria boa ou
ruim para a formação das sociedades? A intolerância afeta apenas as vítimas ou é prejudicial
também a quem a pratica?
Nesse mesmo sentido, o aspecto quantitativo das populações interfere na qualidade das
garantias dos grupos sociais de nosso país, isto é, ser maioria ou minoria é importante para que
se tenha este ou aquele direito no Brasil? Ou a a�rmação dos direitos não tem nada a ver com a
quantidade de pessoas de uma comunidade especí�ca? As comunidades minoritárias de nosso
país devem observar obrigatoriamente o que a maioria da população determinou?
Será que alguns problemas já longínquos da espécie humana – racismo, machismo,
nacionalismos – foram solucionados ou, pelo contrário, acentuados? Talvez, na verdade,
estejamos criando novas formas de intolerância ou de ceticismo acerca dos problemas globais –
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
como o aquecimento da temperatura terrestre? Ou mesmo retomando antigas formas de
fanatismo, como o fundamentalismo religioso?
A causa feminista, por exemplo, já está superada ou seus argumentos ainda têm validade,
mesmo nos dias de hoje? E as novas formas de se lidar com as questões de gênero e
sexualidade, são um exagero ou têm importância para os indivíduos e sociedades
contemporâneas?
Sejam quais forem as respostas, a busca para de�ni-las exigirá, certamente, re�exões e
questionamentos fundamentais para nos situarmos de modo consciente na sociedade em que
vivemos.
A unidade está dividida em três aulas:
aula um: toda democracia é plural?. Nesta aula, faremos re�exões teóricas sobre quais
seriam os elementos essenciais de um regime democrático, bem como se esses pilares da
democracia sempre foram os mesmos ou se alteraram com o passar do tempo.
aula dois: o que é “ideologia de gênero”?. Nesta aula, faremos uma análise conceitual e
histórica do conceito de gênero, e uma re�exão sobre uma outra situação recorrente na
sociedade brasileira: a violência contra a mulher e os crescentes casos de feminicídio.
aula três: vivemos uma onda de fanatismo?. Nesta aula, veremos que a pluralidade e a
diversidade constituem atributos importantes para a democracia e a sociedade brasileiras.
Introdução da aula
Qual é o foco da aula?
Nesta aula, veremos o conceito de democracia bem como os aspectos relacionados aos direitos
civis e políticos.
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Objetivos gerais de aprendizagem
Ao longo desta aula, você irá:
relatar a noção popular do conceito de democracia;
examinar o desenvolvimento de novas concepções acerca da titularidade de direitos civis e
políticos;
debater sobre as experiências autoritárias no mundo.
Situação-problema
Não raras vezes nos deparamos com notícias nos jornais – ou somos nós mesmos os próprios
autores das declarações – de que um governo tomou uma atitude incompatível com os valores
democráticos; de que determinada prática constitui uma afronta à pluralidade ou às liberdades
essenciais da democracia; ou de que uma postura apresenta inclinações autoritárias. Por mais
que essas informações sejam compreensíveis para grande parte da população, o exercício de
explicar os conceitos que estão por trás dessas simples a�rmações torna-se um pouco mais
complexo.
Essa di�culdade pode ser entendida como resultado do uso de termos corriqueiros de nosso
cotidiano, que, entretanto, possuem fundamentos um pouco mais elaborados e não tão
trabalhados em nosso dia a dia. Assim, se tomamos de exemplo o próprio Brasil, poderíamos
dizer que a realização de eleições periódicas e legítimas é motivo su�ciente para considerarmos
o país uma democracia plena? O que podemos dizer, por exemplo, diante da ausência de
representatividade das nações indígenas, que não possuem um único congressista eleito desde
a Constituição de 1988?
Em outro exemplo que parece colocar em dúvida a plenitude de nossa democracia, como avaliar
os dados inquietantes compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de
Janeiro (CCIR), que demonstraram que
“[...] mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no
Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas.
[...] Por um lado o racismo e a discriminação que remontam à escravidão e que desde
o Brasil colônia rotulam tais religiões pelo simples fato de serem de origem africana,
e, pelo outro, a ação de movimentos neopentecostais que nos últimos anos teriam se
valido de mitos e preconceitos para “demonizar” e insu�ar a perseguição a
umbandistas e candomblecistas” (PUFF, 2016, [s.p.]).
Caso um grupo social especí�co – as comunidades indígenas, por exemplo – não dispuser de
meios institucionais su�cientes para a�rmar publicamente suas opiniões e posicionamentos, o
caráter democrático do país estaria prejudicado? E se essa limitação fosse no campo religioso,
afetando, por exemplo, o pleno exercício das crenças de matriz africana, o Brasil ainda assim
seria uma democracia? Ou a população relativamente menor dessas comunidades veria reduzida
a importância de assegurar sua presença e expressões em nosso país?
Tais situações reais, que a�igem comunidades tradicionais da história e da identidade brasileiras,
nos
,direcionam a re�exões teóricas sobre quais seriam os elementos essenciais de um regime
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
democrático, bem como se esses pilares da democracia sempre foram os mesmos ou se
alteraram com o passar do tempo.
Conceito de democracia
Um dos fenômenos mais tradicionais no campo das ciências humanas consiste na constante
evolução dos conceitos utilizados por suas disciplinas para analisar e explicar as condutas e
relações humanas. Diferentemente, por exemplo, das ciências exatas, em que o aparato teórico é
majoritariamente mantido – um metro signi�ca hoje o mesmo que signi�cou há séculos atrás –,
os termos utilizados nas humanidades podem apresentar profundas alterações em seu sentido
conforme a espécie humana se desenvolve; isso se justi�ca, principalmente, pela necessidade de
incorporar nesses conceitos as inovações produzidas pelo homem com o passar dos anos,
adequando-os às novas realidades que se sucedem.
Quando trabalhamos com conceitos já milenares, esse processo de transformação pode ser
ainda mais intenso, como é o caso da ideia de democracia. Em grande medida, o conceito de
democracia nos transmite a ideia de um regime político no qual os cidadãos têm participação na
condução do governo de uma coletividade, seja essa atuação exercida de modo direto pelos
cidadãos – a exemplo de uma consulta popular sobre um tema importante – ou por meio da
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Sociedade Brasileira e Cidadania
representação, na qual os cidadãos elegem mandatários para tomarem as decisões relativas à
coletividade – como é o caso clássico das eleições.
Esse sentido de participação popular que deriva do termo democracia se explica já nas origens
desta palavra, que, em grego antigo, unia demos (povo) e kratos (poder), constituindo, portanto, o
poder do povo ou o governo do povo. Se é bem verdade que essa noção de participação popular
se mantém vinculada ao termo democracia desde a Grécia Antiga até a atualidade, existem
outras concepções que foram gradativamente adicionadas ao conceito para que chegássemos
ao que, hoje, entendemos por democracia, conforme veremos a seguir.
Para Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.), expoente da �loso�a da Grécia Antiga – e, em
verdade, um dos fundadores da �loso�a enquanto ciência –, as re�exões políticas deveriam
questionar qual seria a melhor forma de governo, a exemplo da perfeita – e �ctícia – república de
Callipolis. Segundo esse pensador, mais do que pensar quantitativamente como seria
estabelecido o governo – se com apenas um, alguns ou vários governantes –, a �loso�a política
deve obrigatoriamente levar em conta aspectos relacionados aos valores de um sistema, uma
vez que a busca pela justiça deveria orientar a condução das cidades-estados, as unidades
políticas típicas da Grécia Antiga.
Desse modo, em um plano ideal, os governantes deveriam ser indivíduos cujas “almas
superiores” fossem capazes de, racionalmente, buscar o bem comum vinculado à ideia de
justiça, homens cujas virtudes e educação especí�cas os tornassem aptos para exercer o
comando de uma comunidade, de modo puro e honrado: trata-se dos sábios, dos “�lósofos-reis”.
Entretanto, entendendo que essa pureza e sabedoria não estão presentes em todos os
indivíduos, e reconhecendo que as escolhas dos cidadãos podem re�etir essas de�ciências,
Platão argumenta que a opinião popular pode ser manipulada ou tendenciosa, produzindo uma
degeneração do sistema político em etapas sucessivas.
Nessa concepção, a democracia seria a fase na qual os indivíduos, em busca de seus interesses
pessoais, eliminasse essa diferenciação entre “sábios governantes” e “não sábios governados”,
equiparando-os em um mesmo patamar e fazendo com que haja uma liberdade excessiva no
sistema político, algo que prejudica os laços de obediência e hierarquia da sociedade e produz
uma situação de caos e anarquia.
______
Assimile
Motim?
Leia o trecho do livro A república, de Platão, e assimile como a situação descrita pelo �lósofo
ilustra, por meio de uma comparação envolvendo embarcações, a ideia de caos produzida em
uma democracia, segundo a lógica aqui estudada:
“Agora imagina que algo semelhante a isto [o processo de perda de um comando
capacitado e o consequente estabelecimento da desordem] se passa a bordo de um
ou de vários navios. O comandante, em compleição e força física, sobrepuja toda a
tripulação, mas é um pouco surdo, um pouco míope e possui, em termos de
navegação, conhecimentos tão curtos como a sua vista.Os marinheiros disputam o
leme entre si; cada um julga que tem direito a ele, apesar de não conhecer a arte e
nem poder dizer com que mestre nem quando a aprendeu. Além disso, não a
consideram uma arte passível de ser aprendida e, se alguém ousa dizer o contrário,
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Sociedade Brasileira e Cidadania
estão prontos a fazê-lo em pedaços.Atormentam o comandante com os seus
pedidos e se valem de todos os meios para que ele lhes con�e o leme; e se,
porventura, não conseguem convencê-lo e outros o conseguem, matam estes ou os
lançam ao mar.Em seguida, apoderam-se do comandante, quer adormecendo-o com
mandrágora, quer embriagando-o, quer de qualquer outra forma; senhores do navio,
apropriam-se então de tudo o que nele existe e, bebendo e festejando, navegam como
podem navegar tais indivíduos; além disso, louvam e chamam de bom marinheiro, de
ótimo piloto, de mestre na arte náutica, aquele que os ajuda a assumir o comando,
usando de persuasão ou de violência em relação ao comandante, e reputam inútil
quem quer que não os ajude.Por outro lado, no que concerne ao verdadeiro piloto,
nem sequer suspeita de que deve estudar o tempo, as estações do ano, o céu, os
astros, os ventos, se quiser de fato tornar-se capaz de dirigir um navio. Quanto à
maneira de comandar, com ou sem a aquiescência desta ou daquela facção da
tripulação, não pensam que seja possível aprender isso, pelo estudo ou pela prática, e,
ao mesmo tempo, a arte da pilotagem. Não acreditam que nos navios onde
acontecem semelhantes cenas o verdadeiro piloto será tratado pelos marinheiros de
indivíduo inútil, interessado apenas em observar as estrelas?” (PLATAO, [s.d.], p. 258-
259)
Direitos civis e políticos
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Percebe-se, ante o exposto, que o argumento de Platão sobre a dinâmica democrática mostra-se
preponderantemente negativo. Isso acontece, em grande medida, porque a existência de uma
diversidade de características individuais é encarada nessa dinâmica política como sendo algo
nocivo à condução de um bom governo, uma vez que a existência de “almas” desprovidas da
racionalidade �losó�ca se sobreporia às virtudes dos sábios e conduziria a sociedade a uma
situação de desordem.
Esse funcionamento deve ser compreendido à luz do contexto em que o argumento foi
produzido, no qual a participação política era reduzida a alguns homens considerados aptos à
vida pública, excluindo-se, por exemplo, escravos, estrangeiros e mulheres da dinâmica política.
Assim, o desenvolvimento de novas concepções acerca da titularidade de direitos civis e
políticos, expandindo a categoria de indivíduos considerados capacitados para a atuação
pública, apresentará, certamente, impacto na compreensão do conceito de democracia, motivo
pelo qual poderíamos avançar até o momento de surgimento dos ideais liberais e de
questionamento dos Estados absolutistas europeus, a partir do século XVII.
Nesse período da história europeia, três processos políticos e sociais podem ser elencados
como determinantes para a ressigni�cação do Estado, das prerrogativas individuais e,
consequentemente, do aspecto democrático da era moderna. De imediato, a Revolução Inglesa
(1640-1688), sob forte in�uência do pensamento de John Locke (1632-1704), foi essencial para a
limitação do poder absoluto das monarquias absolutistas, e está relacionada ao processo de
consolidação de direitos naturais dos indivíduos, nascidos livres e iguais, capazes, portanto, de
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Sociedade Brasileira e Cidadania
exercer o poder político nas formas
,o foco da aula?
Nesta aula, você desenvolverá um embasamento teórico acerca da política.
Objetivos gerais de aprendizagem
Ao longo desta aula, você irá:
de�nir o conceito de política, bem com a sua importância em nossas vidas;
praticar o exercício de pensar sobre as funções do Estado;
debater a condução do regime político chamado democracia.
Situação-problema
Por mais avesso ao tema que você eventualmente seja, certamente já se encontrou envolvido em
uma discussão sobre política. Seja como forma de manter a interação com algum desconhecido,
em uma leve e despretensiosa conversa no elevador, ou como a�rmação de suas maiores
convicções, numa acalorada discussão sobre o que julga mais importante nesta vida, a política é
tópico recorrente em nosso dia a dia.
Basta nos lembrarmos dos impasses que surgem em nossas redes sociais – ou em nossas
reuniões de família – para percebermos que, mesmo entre pessoas que não dedicam suas vidas
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Sociedade Brasileira e Cidadania
a estudar a política, este tema está presente em nossos cotidianos. Nesse sentido, não seria
difícil recordar ao menos uma discussão política que você presenciou – ou da qual participou –
nas últimas eleições, não é mesmo?
Se a frequência com que tratamos deste tema é alta, a profundidade das argumentações
envolvidas nos debates rotineiros nem sempre apresenta a mesma estatura, seja em função da
natureza complexa dos conceitos envolvidos ou da repulsa que não raras vezes é atribuída a este
assunto. De todo modo, o desa�o que se impõe diante desta situação exige de nós um estudo
mais cuidadoso sobre as características da política, em benefício de nossas conversas
corriqueiras e, como constataremos, de uma in�nidade de aspectos da vida cotidiana que se
relaciona à matéria.
Assim, um bom começo para nossa re�exão seria questionarmos se a administração pública –
atividade essencial da política – funcionaria de modo parecido com a administração privada.
Administrar um Estado é uma empreitada semelhante a cuidar, por exemplo, de uma casa ou de
uma empresa? Ou existem motivações e objetivos especiais da política que tornam essa área
algo diferente daquilo que fazemos em nossa vida particular?
Se, mesmo em uma empresa, a “gestão dos negócios” é algo diferente da “política da
organização”, seria possível tratar a qualidade das políticas públicas como sendo uma questão
apenas de gestão? Se queremos um país democrático, basta que as coisas funcionem como
previsto ou é preciso pensar em valores que devem orientar este funcionamento?
Ao �nal desta aula, não apenas nossas frequentes conversas sobre política poderão se
desenvolver do modo mais embasado, mas nossas próprias percepções acerca do caráter
abrangente e transformador da política em nossa realidade conferirão ao tema ares mais
prazerosos e emancipadores.
Política
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
Você já parou para pensar sobre o porquê de vivermos em sociedade? Se temos interesses,
a�nidades e temperamentos diferentes, por qual motivo decidimos passar nossas vidas sob o
convívio com outras individualidades tão distintas daquilo que nos constitui? Com certeza,
muitas pessoas encontrarão sua resposta na inércia ou na ausência de alternativas viáveis; se já
nascemos em um ambiente coletivo, torna-se extremamente penoso romper com este padrão.
Mas o questionamento persiste: o que, então, ocorre para que tenhamos esta origem já
comunitária? A percepção de que, em praticamente todo o globo, o ser humano se organiza em
agrupamentos – sejam eles aldeias, tribos ou cidades –, em prática que atravessa séculos e
mais séculos da história humana, nos sugere que possa existir algum fator intrínseco à condição
humana que nos torna efetivamente seres voltados à vida em grupo. Esta indagação, nos remete
– uma vez mais – à Grécia Antiga.
Segundo Aristóteles (384-322 a.C.) – nosso já conhecido �lósofo –, esta recorrência humana de
nos organizarmos em agrupamentos não é apenas uma coincidência ou uma casualidade, mas
revela a natureza social que subsiste em cada um dos indivíduos que habita este planeta. De
acordo com o �lósofo, os seres humanos apresentam limitações individuais, algo compreensível
em razão de nossa condição imperfeita, motivo pelo qual buscamos outros indivíduos para a
satisfação de nossas necessidades, em um processo de composição coletiva.
Em linha com esta fundamentação baseada na natureza, Aristóteles a�rma que a aproximação
dos seres humanos se origina na busca pela reprodução, em uma dinâmica também observada
em outros animais. Entretanto, embora os demais seres também sejam dotados de voz, da
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Sociedade Brasileira e Cidadania
capacidade de emitir sons que meramente exprimem sensações de agrado ou desagrado, a
capacidade de formar palavras, possibilitando o desenvolvimento de uma linguagem mais
elaborada, é particular da espécie humana, permitindo-nos acordar e retratar o que constitui o
bem e o mal, o útil e o nocivo, o justo e o injusto, atividades basilares da vida coletiva. Se as
palavras são tão relevantes, estudemos aquelas proferidas pelo próprio sábio grego:
“Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil”
(ARISTÓTELES, 2006, p. 5).
Assim, para o �lósofo, o ímpeto natural de perpetuação da espécie que aproxima machos e
fêmeas encontraria exclusivamente nas faculdades humanas o prosseguimento deste arranjo
coletivo, por meio da consolidação de famílias, em seguida, aldeias, e, subsequentemente,
cidades. O homem seria, portanto, um animal político, isto é, orientado por sua própria natureza
para o desenvolvimento social e cívico em coletividades organizadas; nesta condição, a
estruturação de sociedades não visaria apenas à sobrevivência da espécie humana, mas
também à promoção do bem-estar, compreendido igualmente como desígnio natural da essência
humana.
Neste contexto, a realização plena das faculdades humanas estaria situada justamente nesta
entidade coletivamente formada, necessária para o adequado �orescimento da natureza política
que nos distingue; em contraste, a eventual negativa do aspecto cívico do homem produziria,
segundo a perspectiva aristotélica, seres detestáveis, predispostos à exploração imoral dos
outros e à guerra contínua.
Vinculando a felicidade humana ao pleno exercício desta natureza cívica, Aristóteles conecta a
satisfação individual ao engajamento nestes processos coletivos de busca de um bem comum,
diferenciando, assim, os habitantes dos cidadãos, na medida em que estes últimos não apenas
residem em sociedade organizada, como os primeiros, mas também atuam em prol desta
concepção coletiva da existência humana. A valorização e a consequente necessidade de
responsabilização pelo convívio coletivo �cam explícitas nos ensinamentos do �lósofo:
“O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs a
natureza. O todo existe necessariamente antes da parte. As sociedades domésticas e
os indivíduos não são senão as partes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao
corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando
desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só
conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra.
O mesmo ocorre com os membros da Cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo.
Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a �car com eles,
ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero
de sociedade.” (ARISTÓTELES, 2006, p. 5)
Se, tomando por base a acepção aristotélica anteriormente mencionada, possuímos em nossa
própria natureza o impulso para a atividade política, seria produtivo que nos aprofundássemos
um pouco mais neste conceito para melhor compreendermos nossa relação com a realidade
social que nos circunda, não é mesmo?
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
O termo política seguramente se insere no rol de vocábulos utilizados cotidianamente que, no
entanto, não apresenta uma conceituação evidente
,a serem determinadas por lei, a exemplo do Bill of Rights
(“Carta de direitos”) de 1689.
A Revolução Americana (1776), por sua vez, exerceu fundamental importância para a a�rmação
das ideias de supremacia da vontade popular, da liberdade de associação e do estabelecimento
de mecanismos de controle permanente sobre o governo, conforme defendido por Thomas
Jefferson (1743-1826). Por �m, a Revolução Francesa (1789) centraliza interesses diversos sob a
ideia de nação e estabelece importantes preceitos acerca da separação entre a política e a
religião, ampliando o alcance dos homens nascidos livres e iguais em direitos.
______
Assimile
Declaramos!
Repare como o intervalo temporal de mais de 200 anos que separa a Declaração de
Independência dos Estados Unidos da América (1776), a Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789) e a Constituição da República Federativa do Brasil (1988) não foi
su�ciente para desfazer a in�uência de certas ideias liberais, fortalecidas ao longo do século
XVIII e relevantes até os dias de hoje:
“Declaração de Independência dos Estados Unidos da América
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens
são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre
estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. (HANco*ck, 1776, [s.p.])
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão
Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só
podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 2º. A �nalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais
e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a
segurança e a resistência à opressão. (DECLARAÇÃO..., 1789, [s.p.])
Constituição da República Federativa do Brasil
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...].”
(BRASIL, 1988, [s.p.])
______
As consequências reais observadas nas sociedades que passaram pelos movimentos
revolucionários, bem como os valores e ideias que surgiam nessa mentalidade burguesa e liberal,
foram determinantes para moldar uma nova concepção, mais moderna, da ideia de democracia.
Esse novo modelo democrático torna-se extremamente emblemático pelos estudos do francês
Alexis de Tocqueville (1805-1859), sobretudo em função de sua obra A democracia na América,
resultado de um período de investigações sobre as instituições e costumes observados nos
Estados Unidos da América, ao longo dos anos 1831 e 1832.
Para Tocqueville, o regime democrático tornou-se, à época, uma tendência ampla e inevitável às
sociedades, constituído, em linhas gerais, por uma igualdade de condições – por exemplo, legais,
culturais ou políticas – incompatível com qualquer regime de castas sociais ou de diferenças
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Sociedade Brasileira e Cidadania
sociais hereditárias. Tal situação permite certa mobilidade social e facilita o acesso a postos
pro�ssionais ou políticos, constituindo os denominados “fatores geradores de igualdade”.
Para o pensador francês, é indispensável para um ambiente democrático a efetivação de uma
constante atuação política dos cidadãos, exercida não apenas pelo voto, mas também nas
atividades administrativas, partidárias ou associativas.
Aprofundando suas considerações sobre o aspecto da igualdade, Tocqueville ressalta o risco
que esse compartilhamento de ideias e valores poderia criar, na medida em que a
hom*ogeneização excessiva de uma sociedade estabeleceria uma certa tirania exercida pela
maioria de seus habitantes, impedindo que expressões cientí�cas, �losó�cas ou artísticas, por
exemplo, fossem diversi�cadas.
Assim, segundo o autor, seria fundamental estabelecer um importante equilíbrio entre a busca
pela igualdade e a manutenção das liberdades individuais, a �m de que essa concepção de
igualdade não seja incompatível com uma também importante pluralidade em meio ao corpo
social.
Nesse sentido, em toda situação na qual se estabelece um consenso majoritário a respeito de
um determinado tema, sem que, entretanto, sejam respeitados direitos dissidentes legítimos –
os direitos das minorias que diferem dessa concordância predominante –, estamos diante de um
caso da tirania da maioria. Esse desrespeito aos direitos minoritários ou às liberdades individuais
pode atingir as mais diversas formas de expressão individual ou coletiva, conforme se observa
nos exemplos a seguir:
“O caso da Suíça é didático. O rico país europeu foi um dos últimos do continente a
autorizar o voto das mulheres em nível nacional, o que ocorreu apenas em 1971, em
um referendo. Antes, a legalização do voto feminino era sistematicamente rejeitada
em consultas populares nas quais apenas os homens votavam. Em âmbito estadual,
continuaram existindo restrições ao voto feminino até 1990, quando a Suprema Corte
forçou todas as regiões do país a cumprirem a diretriz federal a respeito do voto das
mulheres. Em 2009, o “majoritarismo” do sistema político suíço novamente produziu
uma violação de direitos humanos. Nas urnas, os suíços votaram para proibir a
construção de minaretes, as torres de oração das mesquitas. A vitória da proibição
ocorreu graças a uma �rme mobilização da direita xenófoba, que instigou o medo na
população ao confundir islã e terrorismo. O “fantasma” foi tão bem criado que os
suíços ignoraram a realidade: quando o referendo foi realizado, havia apenas quatro
mesquitas com minaretes no país todo, e nenhum deles realizava as convocações
para as orações, usuais em países de maioria muçulmana” (O CASAMENTO..., 2017
[s.p.]).
Pensamento liberal
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Repare como essas constatações percebidas já no século XVIII correspondem a certos dilemas
que observamos ainda em tempos atuais. Isso acontece porque a compreensão contemporânea
do conceito de democracia apresenta uma importante herança teórica do pensamento liberal.
Conforme visto, as revoluções burguesas – ou liberais – obtiveram algum êxito no sentido de
garantir certos direitos individuais dos cidadãos frente a potenciais abusos por parte do Estado,
ou mesmo de outros cidadãos.
Assim, podemos mencionar como elementos democráticos provenientes dessa lógica a
proteção das liberdades individuais, compreendidas como a disponibilidade conferida aos
indivíduos de fazer tudo o que não incomode o próximo, a �m de evitar interferências indevidas
do Estado em sua autonomia, e a igualdade de direitos, vedando qualquer discriminação no
exercício das prerrogativas individuais, seja ele em função das classes sociais, convicções
pessoais ou outras formas de a�rmação pessoal.
A combinação desses dois elementos fornece a base teórica para formação de um outro
aspecto indispensável à noção contemporânea de democracia: o direito à alteridade ou direito à
diferença. Se os indivíduos são livres, e devem ser tratados sem quaisquer preferências
injusti�cáveis, é natural que os elementos relacionados à identidade de uma pessoa possam ser
expressados da maneira que lhe convier, e que essas manifestações, por mais plurais que sejam,
detenham as mesmas garantias jurídicas que as demais.
Em outras palavras, sejam quais forem os gostos, preferências, hábitos e pensamentos que
alguém apresente, será sempre necessário ao Estado e aos demais indivíduos reconhecer o
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direito desta pessoa a ter sua existência manifestada conforme quiser – desde que, logicamente,
não afronte a existência ou a dignidade de outras pessoas.
Não se trata de estimular ou forçar um comportamento destoante em uma sociedade que
apresenta certos padrões de costumes e valores, mas, sim, de permitir que alguém, ainda que
isoladamente, encontre espaço para sustentar posições importantes de sua condição humana.
A alteridade torna-se particularmente importante no que se refere
,ou que apresenta apenas um único sentido.
Nos referimos à política quando queremos identi�car a atividade de governar exercida nos
poderes públicos (“ela fez carreira na política”), quando classi�camos as diretrizes e os princípios
de uma organização (“a política da companhia”), quando reunimos um conjunto de medidas
afeitas a um setor (“a política ambiental do governo”), e mesmo quando queremos adjetivar algo
como desviante das normas e procedimentos técnicos aplicáveis a um caso concreto (“a
escolha do diretor foi política”). Cabe-nos, portanto, delimitar esta pluralidade de signi�cados
aplicáveis ao termo, ressaltando os sentidos e conceitos que a palavra política introduz no
âmbito de nosso presente estudo.
Esses empreendimentos, e os empregos dos termos mencionados, dão ensejo às conceituações
de política a que aqui visamos, conforme de�nidas nas palavras da �lósofa Marilena Chauí:
“1. o signi�cado de governo, entendido como direção e administração do poder
público, sob a forma do Estado. O senso comum social tende a identi�car governo e
Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro diz respeito a
programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe,
enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições permanentes que
permitem a ação dos governos. [...]
2. o signi�cado de atividade realizada por especialistas – os administradores – e
pro�ssionais – os políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização
sociopolítica – os partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando cargos e
postos no Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo distante da
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sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e pro�ssionais que se ocupam
exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por eles” e não “por nós”,
ainda que “eles” se apresentem como representantes “nossos”;
3. o signi�cado, derivado do segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito
con�ável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e
frequentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios
ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro signi�cado é o mais corrente para o senso comum
social e resulta numa visão pejorativa da política. Esta aparece como um poder
distante de nós (passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas diferentes
de nós (os administradores e pro�ssionais da política), através de práticas secretas
que bene�ciam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade.” (CHAUI, 2000,
p. 476 – grifo nosso)
A política em nossas vidas
Repare, que as de�nições levantadas pela professora revelam aparentes contrariedades entre si,
uma vez que ora classi�cam a dinâmica política como sendo de interesse amplo da coletividade,
e, assim, de valor elevado, ora situam a política em uma redoma especializada, distante da vida
ordinária do homem médio e, eventualmente, contrário a suas aspirações. Longe de constituir
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um descuido ou uma fragilidade conceitual, esta classi�cação tem por objetivo evidenciar o que
a �lósofa classi�ca de “paradoxo da política”, obrigando-nos a questionar certas percepções
corriqueiras sobre o tema e rede�nir o lugar da política em nossa vida cotidiana.
As potenciais contrariedades existentes neste paradoxo seriam reduzidas se compreendermos a
política em sintonia com a ideia aristotélica de animal político, reforçando que o
desenvolvimento integral das faculdades individuais exige o reconhecimento dos vínculos
sociais existentes em uma coletividade; desse modo, esta frequente percepção de que a política
é algo estranho, ou mesmo contrário, ao desenvolvimento pessoal de cada ser humano não teria
o acolhimento que, infelizmente, ainda recebe em nossa sociedade.
De acordo com a professora Chaui, é fundamental ressaltar o potencial que a política nos
fornece para o ajuste de visões con�itantes e opiniões diversas sem que seja necessário
recorrermos a confrontos abertos, por meio do uso da força; assim, traduzindo
“o modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses con�itantes, seus
direitos e obrigações enquanto seres sociais. Como explicar, então, que a política seja
percebida como distante, malé�ca e violenta?” (CHAUI, 2000, p. 478).
Adicionalmente, na condição de campo de deliberação para a busca do bem comum, não haveria
fundamento relevante para compreender a política como fardo a ser encarado por cada
indivíduo. Se é verdade que o desgaste gerado pelos desvios do interesse público torna-se
cotidianamente presente em nossas percepções – sob a forma de notícias de corrupção,
carência de serviços públicos ou disputas partidárias improdutivas –, o combate a tais
deturpações se encontra justamente no reforço da consciência política, e não em sua recusa.
______
� Pesquise mais
Apolitismo
O desinteresse do cidadão em participar das discussões relacionadas à vida coletiva é algo que
diz respeito unicamente ao indivíduo ou apresenta consequências amplas? A abstenção da
participação política é uma prerrogativa da democracia ou uma ameaça à democracia?
Essas questões são trabalhadas de modo enriquecedor pelo �lósofo francês Francis Wolff na
entrevista “Desinteresse por política ameaça a democracia” (2012), concedida ao Senado
Notícias.
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O aumento do interesse nos assuntos comunitários e do sentimento de pertencimento a um
grupo social amplo eleva o zelo e a responsabilidade sobre a condução da política, permitindo-
nos perceber que os diversos domínios de nosso cotidiano estão sujeitos a considerações
políticas, seja em função da existência de leis e regulamentos aplicáveis a um tema ou da
atuação direta do Estado. De modo semelhante, nosso trabalho, nosso lazer, nossos costumes e
hábitos consolidam práticas sociais que conferem ao funcionamento coletivo certas
especi�cidades, que acabam por in�uenciar na organização política.
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Exempli�cando
A política espelhando o costume
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2012/06/20/201cdesinteresse-por-politica-ameaca-a-democracia201d
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2012/06/20/201cdesinteresse-por-politica-ameaca-a-democracia201d
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2012/06/20/201cdesinteresse-por-politica-ameaca-a-democracia201d
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Tradicionalmente, os cidadãos tendem a orientar suas atitudes diárias em conformidade com o
que estipula a lei; seja por convicção de que a norma determina uma conduta desejável, pelo
sentimento de pertencimento a uma sociedade ou apenas pelo receio de eventuais sanções que
o descumprimento de uma regra pode gerar, os indivíduos mostram-se, em linhas gerais,
dispostos a aceitar o que manda a norma. Esta relação, todavia, existe também no sentido
oposto, já que não são raras as vezes em que são justamente os hábitos de conduta popular os
fundamentos para a edição de uma lei. Leia a reportagem a seguir e veja como este processo
pode ser importante para nossa vida em sociedade.
“Rio de Janeiro é primeira capital brasileira a proibir canudos plásticos
A decisão vai ao encontro de um crescente movimento global de combate ao lixo
plástico, um dos principais vilões da poluição marinha
(Por Vanessa Barbosa)
São Paulo – O Rio de Janeiro é a primeira capital brasileira a banir o uso de canudos
plásticos em quiosques, bares e restaurantes. O prefeito da cidade, Marcelo Crivella,
sancionou o projeto de lei que proíbe a distribuição de canudinhos plásticos em
estabelecimentos alimentícios.
A medida foi publicada no Diário O�cial da cidade do Rio nesta quinta-feira (5). O
projeto havia sido aprovado na Câmara Municipal no mês passado. Ainda falta
determinar o prazo para a entrada em vigor da medida.
De autoria do vereador Jairinho (MDB), o projeto estipula multa de até R$ 3 mil aos
estabelecimentos que descumprirem a lei, valor que pode ser multiplicado em caso
de reincidência. Ao invés do plástico, o projeto determina o uso de
,canudos feitos de
materiais biodegradáveis.
Segundo seu artigo primeiro, a lei sancionada “obriga os restaurantes, lanchonetes,
bares e similares, barracas de praia e vendedores ambulantes do Município do Rio de
Janeiro a usar e fornecer a seus clientes apenas canudos de papel biodegradável
e/ou reciclável individualmente e hermeticamente embalados com material
semelhante”.
Centenas de milhares de cariocas apoiaram a causa por meio de uma petição online
criada pela ONG Meu Rio, apoiadora do projeto.
No mês passado, o governador do Estado do Rio, Luiz Fernando Pezão, também
sancionou uma lei que proíbe estabelecimentos comerciais, como supermercados de
distribuir sacolas feitas com plásticos derivados de petróleo e que entrará em vigor
em 18 meses.
Antes do Rio, o município de Cotia, em São Paulo, foi a primeira cidade brasileira a
proibir a venda e distribuição de canudos plásticos. A lei, sancionada no mês de
junho, obriga restaurantes, lanchonetes, bares e vendedores ambulantes a usarem e
fornecerem a seus clientes somente canudos de papel biodegradável e ou reciclável.
As decisões vão ao encontro de um crescente movimento global de combate ao lixo
plástico, um dos principais vilões da poluição marinha. Segundo a ONU, ao menos 50
países têm propostas nessa seara.” (BARBOSA, 2018, [s. p.], grifo nosso)
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Sistemas políticos
Justamente por se tratar de uma atividade potencialmente ampla, cujas intersecções abrangem
todas as áreas de nossa vida rotineira, o exercício efetivo da administração pública pode
apresentar signi�cativa diferença no alcance da intervenção estatal, de�nindo variados sistemas
políticos percebidos ao longo da história.
O exercício de pensar sobre quais devem ser as funções do Estado pode ser bene�ciado pela
percepção oposta, imaginando como seriam as relações humanas sem esta organização
política, em uma conjuntura na qual cada homem atua isoladamente – o denominado Estado de
Natureza.
Para o �lósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), esta situação resultaria em um con�ito
permanente, uma vez que cada indivíduo, temendo por sua vida, desenvolveria métodos para se
proteger, estimulando que os demais também ampliem seu poderio; a inexistência de garantias
de proteção tornaria o medo uma constante da existência humana, já que os indivíduos
constituiriam ameaças uns aos outros, conforme ilustra a famosa ideia de que “o homem é o
lobo do homem”. Nesta situação, seria razoável que os homens acordassem em abrir mão de
parte de suas liberdades individuais para, coletivamente, estabelecer uma autoridade superior,
capaz de assegurar a paz; trata-se da formação do Estado soberano, ao qual os súditos cederiam
seu poder.
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A metáfora estabelecida por Hobbes para o produto deste pacto social é a do Leviatã, gigantesco
monstro bíblico, o que re�ete a concepção de poder absoluto que o Estado assumiria nesta sua
prerrogativa de manutenção da ordem. Assim, neste sistema político, seria legítimo que o ente
soberano concentrasse o poder de intervir, sem responsabilizações, em quaisquer dos domínios
da vida coletiva ou de seus súditos, conforme efetivamente se observou nos modelos de
monarquia absolutista contemporâneos deste pensador inglês. Segundo Hobbes, esta
concentração de poder se legitimaria pelo seguinte argumento:
“Visto que o �m dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e visto que quem tem
direito a um �m tem direito aos meios, constitui direito de qualquer homem ou
assembleia que detenha a soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e a
defesa como de tudo o que possa perturbar ou di�cultar estas últimas. E o de fazer
tudo o que considere necessário ser feito, tanto antecipadamente, para a preservação
da paz e da segurança, mediante a prevenção da discórdia no interior e da hostilidade
vinda do exterior, quanto também, depois de perdidas a paz e a segurança, para a
recuperação de ambas.” (HOBBES, 1983, p. 109)
______
Assimile
Leviatã
Repare em algumas das descrições atribuídas ao monstro Leviatã extraídas do Capítulo 41 do
Livro de Jó, do Antigo Testamento da Bíblia cristã, a �m de compreender a magnitude do poder
do Estado hobbesiano:
“14 Quem abriria as portas do seu rosto? Pois em redor dos seus dentes está o terror.
15 As suas fortes escamas são excelentíssimas, cada uma fechada como com selo
apertado.
[...]
19 Da sua boca saem tochas, faíscas de fogo arrebentam dela.
20 Das suas narinas procede fumaça, como de uma panela fervente, ou de juncos
ardentes.
21 O seu hálito faria in�amar os carvões, e da sua boca sai chama.
22 No seu pescoço reside a força; perante ele até a tristeza salta de prazer.
23 Os músculos da sua carne estão pegados entre si; cada um está �rme nele, e
nenhum se move.
24 O seu coração é �rme como uma pedra, e �rme como parte da mó de baixo.
25 Levantando-se ele, tremem os valentes; em razão dos seus abalos se puri�cam.
26 Se alguém lhe tocar com a espada, essa não poderá penetrar, nem lança, dardo ou
arpão.
[...]
33 Na terra não há coisa que se lhe possa comparar, pois foi feito para estar sem
pavor.
34 Todo o alto vê; é rei sobre todos os �lhos de animais altivos.” (BÍBLIA SAGRADA,
2015, p. 869-870)
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______
No século XVIII, entretanto, a forte conexão entre o poder do monarca absolutista com as
prerrogativas do Estado passa a ser questionada, sobretudo à medida que o crescimento
econômico da burguesia europeia se avoluma, demandando a equivalente ampliação de direitos
civis e políticos desta importante camada social. O poder concentrado do soberano, neste
contexto, passa a ser compreendido como uma afronta à liberdade individual, e o
estabelecimento de limites à intervenção do Estado nas vidas privada e coletiva passa a ser
defendido com mais vigor.
Em linhas gerais, este liberalismo político reduz as funções do Estado, de modo a classi�cá-lo
como “Estado mínimo” ou “Estado de polícia”, concentrando a atuação pública na proteção das
garantias individuais, como o direito à propriedade privada, na manutenção da ordem social e na
defesa frente a ameaças externas.
A aplicação prática desta nova mentalidade se desenvolve por meio da imposição de
constituições às quais os monarcas deveriam se subordinar, nas chamadas monarquias
constitucionais, da emergência de estruturas republicanas, a exemplo dos Estados Unidos da
América, e, sob a in�uência de John Locke (1632-1704), da lógica de separação dos poderes, nas
quais a existência de entes distintos passa a constituir importante instrumento de contenção do
poder do soberano.
______
Re�ita
No Brasil, o Princípio da Separação de Poderes encontra-se inscrito na Constituição Federal de
1988, conforme estipula o Artigo 2º:
“São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário” (BRASIL, 1988).
Esta disposição constitucional é fundamental para que os poderes constituídos tenham a
liberdade para realizar suas tarefas de modo autônomo (‘independentes”) e, também, para que
exerçam a função de supervisionar as atividades uns dos outros, com o objetivo de evitar que
quaisquer deles cometam irregularidades, em um denominado “sistema de freios e contrapesos”
(“harmônicos”). Você saberia identi�car casos da realidade política brasileira em que um poder
teve a prerrogativa de in�uenciar na ação de outro, seja para validá-la ou para contestá-la?
Do Estado neoliberal à Democracia
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Esta perspectiva preponderantemente individualista do Estado liberal foi fundamental para a
valorização da liberdade humana e para o fortalecimento do progresso econômico e cientí�co,
estimulado, por exemplo, pela livre iniciativa; todavia a existência de oportunidades e condições
distintas para o progresso individual e para o exercício destas liberdades pessoais, em um
ambiente de contração dos vínculos solidários e coletivos da sociedade, deu margem à
ampliação de injustiças sociais, fazendo com
,que grande parcela das populações nacionais se
visse excluída dos benefícios do progresso.
A reação a este processo excludente manifesta-se já no �m do século XIX e começo do XX, pela
retomada de concepções políticas favoráveis à maior atuação Estatal, focada, neste momento,
na solução de graves problemas sociais – como a fome e o desemprego.
Nas experiências socialistas observadas, sobretudo, na União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas e em países do leste europeu, o Estado assumiria a tarefa de reverter privilégios
concentrados por certas classes sociais, defendendo a expansão do controle estatal sobre os
meios de produção e a subsequente redistribuição das riquezas de modo mais igualitário – e
teria como contrapartida a supressão de ideias de livre iniciativa e outras liberdades da
concepção liberal.
O modelo de Estado de bem-estar social, por sua vez, defenderia a intervenção estatal não como
detentora dos meios de produção, mas, preponderantemente, reconhecendo as funções de
regulação e estímulo que a atividade estatal pode exercer na dinâmica econômica e na
prestação de serviços públicos, conciliando interesses privados e públicos, a exemplo do que se
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observou na presidência de Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) nos Estados Unidos, nos
anos de 1930 e 1940.
______
Re�ita
O véu da ignorância
Resumidamente, a maior ingerência do Estado nos setores da vida cotidiana, por meio, por
exemplo, da prestação de serviços públicos gratuitos ou a preços módicos eleva os custos do
governo, que, frequentemente, passam a ser compensados por maiores impostos cobrados da
coletividade.
Imagine que você seja muito mais rico do que na situação �nanceira em que agora se encontra e,
portanto, capaz de pagar por todos os serviços que utiliza; você seria favorável ao aumento da
tributação para compensar estes gastos governamentais, que você sequer utiliza? Agora, em
sentido inverso, imagine-se muito pobre, dependendo quase que integralmente destes serviços
públicos; a sua opinião anterior sobre a justiça na concessão destes serviços seria mantida ou
esta nova situação alteraria o seu posicionamento?
Não seria interessante considerarmos a justiça destas prestações governamentais de modo
independente de onde atualmente nos encontramos? Esse é o propósito do �lósofo John Rawls
em sua teoria do “véu da ignorância”, explicada no vídeo “O que é um bom começo?” (2015), da
Universidade de Harvard.
______
Já nas últimas três décadas do século XX, entretanto, a compreensão da importância das
intervenções estatais nos sistemas políticos volta a oscilar em direção aos preceitos do
liberalismo. Os avanços tecnológicos, o desenvolvimento de mercados �nanceiros e o fracasso
de experiências de orientação socialista podem ser citados como fatores que conferem à
atuação do Estado a classi�cação de obstáculo à lucratividade e ao aspecto global e dinâmico
do capitalismo contemporâneo.
Sob tal perspectiva neoliberal, a atuação de agentes privados seria mais e�ciente do que
intervenções estatais nos setores da economia, justi�cando o estabelecimento de microestados,
cuja função seria apenas garantir o funcionamento do livre mercado no qual as interações
privadas acontecem.
______
� Pesquise mais
Os exemplos de que a defesa ou a rejeição da intervenção estatal em setores da vida social são
in�uenciadas por ideologias ou movimentos políticos contemporâneos são fatos na história.
Mas os países poderiam sugerir práticas diferentes daquelas que usaram, com o objetivo de
esconder o caminho que percorreram até se tornarem ricos? Seria possível que um país, por
exemplo, investisse diretamente em setores da economia, intercedesse nas relações de trabalho
e, depois de atingir um patamar elevado de desenvolvimento, recomendasse que os demais
países �zessem justamente o contrário do que fez?
Essa é a tese do economista Ha-Joon Chang no livro: Chutando a escada: a estratégia do
desenvolvimento em perspectiva histórica, publicado pela Editora Unesp no ano de 2003.
Recomendamos, em especial, a leitura do trecho entre as páginas 11 e 28.
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https://www.youtube.com/watch?v=Sh3zICA_uEY
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Note, que essas variações nos fundamentos e nas consequências da atuação estatal
apresentam fortes vínculos com a capacidade de exercício dos direitos e das garantias
individuais e coletivas, exercendo, portanto, in�uência na a�rmação do caráter democrático de
uma sociedade. Todavia, a classi�cação de um ambiente democrático não é exclusiva de um ou
outro nível de intervenção estatal, mas exige uma composição de procedimentos que ora se
baseia na abstenção do Estado de determinados atos, ora requer uma prestação de serviço
público, a depender do preceito democrático protegido.
A democracia, ou o “governo do povo” em grego antigo, pressupõe um regime político no qual a
condução dos afazeres da sociedade é de�nida pelos cidadãos, agindo diretamente neste
processo de tomada de decisões ou por meio de representantes eleitos para tal �nalidade;
assim, o estabelecimento de processos eleitorais regulares, de mecanismos de participação
popular, de partidos políticos e da observância da vontade majoritária são, certamente, requisitos
fundamentais para uma democracia.
Entretanto, a democracia não consiste apenas nestas participações e representações, mas, de
acordo com conceituações contemporâneas, engloba também aspectos substantivos das
condições de vida experimentadas pelos cidadãos, incluindo variáveis como o bem-estar
humano, a preservação do sentimento de segurança, a proteção de minorias e a capacidade de
resolução de con�itos de uma sociedade.
Desse modo, a criação de direitos, e a viabilização de meios efetivos para o exercício dessas
prerrogativas, também são elementos indispensáveis a uma democracia, exigindo que, em certas
situações, o Estado tenha uma conduta negativa, abstendo-se de interferir na vida cotidiana dos
cidadãos, em benefício, por exemplo, de seu direito à propriedade, à liberdade de culto e de
expressão; em outros casos, é justamente pela intervenção do Estado que os princípios
democráticos são respeitados, ao propiciar condições mínimas de saúde e educação, ao
promover a inclusão de grupos marginalizados, entre outros.
De modo semelhante, a negação extrema da democracia, a ditadura, pode ser fortalecida pela
execução arbitrária de atos do poder público, como o cerceamento de direitos políticos dos
cidadãos, ou da inércia do Estado em assegurar condições básicas da dignidade humana,
permitindo, por exemplo, o extermínio de grupos sociais minoritários.
Diante das múltiplas potencialidades que o estudo da política nos fornece, abordando nossa
essência enquanto seres humanos, nossos hábitos e afazeres cotidianos e orientando o desfrute
efetivo dos direitos elementares de um Estado democrático, parece-nos que a discussão política
constitui recurso de valor inestimável para a compreensão de nossa realidade e de nossa própria
existência em sociedade.
Conclusão
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Sociedade Brasileira e Cidadania
Munidos dos conhecimentos que adquirimos nesta aula, seria interessante retornarmos às
questões que deram início ao nosso estudo: a�nal, política é sinônimo de “administração” ou
“gestão”? A política é apenas mais um dos ambientes em que devemos estabelecer regras de
organização e convivência ou suas particularidades a colocam em um patamar diferenciado de
importância?
Se, conforme nos orientou Aristóteles, existem elementos característicos de nossa natureza
humana que – diferentemente de outros seres vivos – nos fazem insistir na vida em coletividade,
seria razoável encontrarmos na esfera política um valor maior do que em outros núcleos de
nossa existência cotidiana, não é mesmo? Se somos “animais políticos” – e não “animais
domésticos” ou “animais corporativos” – é porque é justamente na condução das atividades
típicas da existência em sociedade que o homem encontra lugar para dar vazão a suas mais
elevadas potencialidades.
Assim, a política
,deve considerar valores – e formas práticas de implementar estes valores em
nossa realidade – que são especí�cas de sua área de atuação, exigindo do Estado um
funcionamento diferente de outras organizações sociais menos abrangentes – como domicílios
e empresas privadas.
Muito embora a atuação do Estado tenha sido interpretada de diferentes maneiras ao longo da
história, em sintonia com diferentes movimentos e ideologias sociais vigentes, é preciso
reconhecer que estes diversos sistemas políticos já observados conferem ao Estado uma
posição particular na organização das dinâmicas sociais. Mesmo quando se pretende reduzir a
intervenção estatal ao mínimo possível, estas atividades que ainda assim permanecem sob
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domínio do Estado – garantir direitos, por exemplo – traduzem a essência da vida política que
não encontra contrapartidas nas formas de organização privada.
Neste mesmo sentido, os processos coletivos de de�nição da maior ou menor atuação estatal
são também essencialmente políticos; assim, ainda quando se pretende defender a valorização
do âmbito privado da vida dos indivíduos, este posicionamento só terá relevância social se
obtiver força política, algo que demonstra a amplitude e a importância deste campo.
Por tratar de valores sociais, de�nindo quais são os princípios mais importantes de uma
coletividade e como aplicá-los, a atividade política não se restringe apenas à gestão técnica da
administração pública. Se bem verdade que o estabelecimento de um conjunto de mecanismos e
procedimentos práticos pode ser fundamental para a condução dos serviços públicos, a
formação de convicções mais amplas que servem de orientação a uma sociedade – a
democracia ou a dignidade da pessoa humana, por exemplo – asseguram que a política seja
algo mais do que a simples operacionalização da vida em grupo, mas, sim, uma forma da
sociedade expressar seus ideais mais fundamentais.
Desse modo, mais do que uma necessidade prática – das discussões familiares às decisões
eleitorais –, o estudo da política é algo que nos quali�ca enquanto seres humanos e de�ne a
essência da sociedade que queremos formar.
Aula 3
É possível ser ético no mundo contemporâneo?
Introdução da aula
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Qual é o foco da aula?
Nesta aula, faremos algumas re�exões que o auxiliará na compreensão do ambiente em que
vivemos.
Objetivos gerais de aprendizagem
Ao longo desta aula, você irá:
examinar as características básicas do capitalismo;
analisar os limites e capacidades do individualismo na sociedade;
contrastar a rede de relações sociais que forma nossa coletividade.
Situação-problema
Não é preciso ser muito atento à realidade brasileira para perceber que o sucesso pro�ssional, a
plena satisfação pessoal, a segurança �nanceira e a capacidade de vivenciar em total liberdade
tudo aquilo que valorizamos constituem objetivos difíceis de serem alcançados, não é mesmo?
Vivemos em um mundo repleto de obstáculos e hostilidades para que sigamos os caminhos que
estabelecemos em nosso desenvolvimento pessoal.
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Sendo assim, diante de uma in�nidade de di�culdades que a vida contemporânea nos impõe – e
que não foram criadas por nós mesmos, mas pela forma como a sociedade decidiu se organizar
–, seria razoável que fossemos cobrados por ter um comportamento que valorizasse a
manutenção e a articulação dos vínculos sociais? Ou o mundo contemporâneo exige que
cuidemos exclusivamente de nossas próprias vidas, exercendo o que melhor nos cabe fazer para
nós mesmos, sem que sejamos responsabilizados por problemas e situações que fogem da
nossa alçada particular?
Se a competição para obter uma vaga na faculdade, e depois um emprego satisfatório, é intensa,
devo pensar no que é bom para a sociedade ou apenas assegurar meu crescimento pessoal? Se
não determino diretamente os rumos da sociedade, por que deveria assumir a responsabilidade
de alertar para os erros que eventualmente a coletividade produzir? Se os padrões de felicidade
individual apresentam efeitos colaterais nocivos, cabe ao indivíduo questionar esses padrões?
Em síntese, é possível manter, nos dias de hoje, condutas voltadas ao desenvolvimento da
sociedade ou a realidade contemporânea exige que o indivíduo abandone perspectivas coletivas
em benefício de seus ganhos individuais?
As respostas a essas perguntas exigirão a análise de alguns elementos de nosso regime
econômico, investigando preceitos do sistema capitalista, bem como demandam re�exões sobre
o que podemos entender por liberdade e responsabilidade nos tempos atuais. Ainda, será
interessante investigar como os padrões de consumo vigentes se relacionam com o ambiente
em que vivemos e como esse mesmo ambiente se depara com novas possibilidades de
intervenção humana em seu funcionamento.
Capitalismo
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Alguns temas relacionados à vida e à organização coletiva tendem a levantar acaloradas
polêmicas em nossas discussões de rotina, e mesmo nos mais elevados níveis de debates
acadêmicos e políticos; o sistema capitalista, seguramente, está incluído nessa lista. Sobretudo
em momentos de crise econômica ou política, costumamos ouvir que certos problemas são
resultados de um regime capitalista desumano ou, ao contrário, que são as tentativas de limitar o
funcionamento capitalista as causas dos problemas brasileiros. De qualquer forma, qualquer
análise séria sobre o Brasil tende a incluir o país na relação de países capitalistas.
Quando falamos de capitalismo, temos que reconhecer que esse sistema econômico, político e
social se apresentou de diferentes formas desde suas primeiras manifestações, ainda de modo
incompleto, na Europa Ocidental do século XVIII, até se tornar o regime predominante no mundo
atual e aplicado em nosso país. Existem, entretanto, algumas características básicas do
capitalismo que são fundamentais para a de�nição desse sistema, conforme veremos a seguir.
Inicialmente, constatamos que um regime capitalista apresenta o mercado como forma de
produção e distribuição de bens e serviços e que compradores e vendedores interagem nesse
regime para satisfazer suas necessidades. Adicionalmente, a existência da propriedade privada é
elemento essencial do capitalismo, existindo uma série de direitos para assegurar que alguém
detenha o domínio exclusivo sobre alguma coisa.
Além disso, o capitalismo exige que uma parte da população venda a sua força de trabalho
nesse mercado, para obter seu sustento. Por �m, podemos identi�car como quarto elemento do
capitalismo o comportamento individualista dos agentes econômicos (compradores e
Disciplina
Sociedade Brasileira e Cidadania
vendedores), algo que merece especial atenção em nosso estudo, uma vez que, como vimos,
ética e política – nossos objetos de estudo – são conceitos coletivos por natureza.
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Assimile
Individualismo liberal
Nas ciências humanas é particularmente importante reconhecer que os conceitos não surgem
ou perdem a validade instantaneamente, mas se inserem em processos coletivos de
fortalecimento de ideias e concepções relacionadas a dinâmicas sociais vigentes em um tempo
e espaço.
Assim, o individualismo de que tratamos aqui deve ser compreendido no contexto mais amplo do
século XVIII, de questionamento do modelo político do Absolutismo, regime caracterizado,
majoritariamente, pela extrema concentração de poder nas mãos de um monarca. Essa
organização política reduzia a liberdade de ação dos indivíduos, uma vez que homens e mulheres
estavam sujeitos às determinações reais, que não raras vezes se mostravam abusivas, se
comparadas às prerrogativas que temos na atualidade.
A reação a esse cerceamento à liberdade individual se apresentou, nessa situação, por meio do
Liberalismo, movimento que pregava o respeito e o fortalecimento de direitos e garantias
individuais contra essa alegada opressão absolutista. Essa é a raiz do individualismo que
caracteriza o Estado e a economia liberais, em